18 abril 2006

Mais uma fotografia sociológica

É nas cidades moçambicanas e no novo mundo da rua reinventada e refeita onde tem curso um permanente exercício de violência catárquica, onde gerações de modestos big men fazem diariamente o ritual da prova de força e da rixa corsária, onde a virulência dos protestos sociais e da crítica política é simultaneamente aguda nas palavras, nos gestos, na dança, no canto, nos provérbios urbanos e no chiste e amortecida pelo universo da informalidade (a qual afinal, é exemplarmente formal) e das redes de solidariedade, é nas cidades onde jovens adolescentes transformam os corpos em micro-empresas de aluguer de sexo pondo em causa o império dos homens atentos à tradição e à masculinocracia decisional[1], onde, como nas barracas e nos dumba nengues, actores das periferias se cruzam com actores do centro, aqueles sobrevivendo, estes acumulando.

É nas cidades onde os excluídos afluem, em massa, aos curandeiros e às igrejas[2].
Como escreveu um dia Karl Marx, "a angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia (…). Exigir que [o povo] renuncie às ilusões é exigir que ele renuncie a uma situação que precisa de ilusões."[3]

É nas cidades onde os problemas mentais, neurológicos e psicossociais dos excluídos desaguam com frequência nos hospitais psiquiátricos e onde a droga e o crime plural se tornam muitas vezes as saídas lógicas do mundo problemático. Depois, em prisões e hospícios, os que detêm o monopólio da criação das normas sociais e da definição dos critérios de transgressão esforçam-se por normalizar os que foram, afinal, objectivamente afastados por um sistema excludentemente cruel[4]. A montante e a jusante do processo, as famílias dos doentes mentais acabam, elas também, por sancionar o diagnóstico psiquiátrico e por recusar aos seus parentes o estatuto da normalidade.

É nas cidades onde muitos idosos e os deficientes se vêem a braços com a fragilização das redes tradicionais de protecção. As "romarias" de mendigos das sextas-feiras nas cidades moçambicanas são, a esse respeito, eloquentes.

É nas cidades onde as mulheres assumem novos papéis e, em muitos casos, passam a ser os sustentáculos financeiros dos lares, organizando todo um complexo processo de compra, venda e revenda.

É nas cidades onde circula o rumor, verdadeiro poor-man's bomb para dizer como Mbembe[5], verdadeira rádio rua que é ao mesmo tempo forma de produção de sentido e mecanismo de crítica social.

Estamos, verdadeiramente, perante um mundo urbano e peri-urbano, precário, contraditório e mestiço, entre o desemprego e o subemprego biscateiro, tido por muitos como anómico e caótico[6], mundo surgido da interacção e do conflito com outros mundos e com outros grupos sociais e da assimetria de recursos de poder[7].

Excluídos dos benefícios do bem-estar na ordem social vigente em Moçambique, os actores desse mundo periférico e mestiço criam uma contra-sociedade compósita, com novas regras, novos valores, novas identidades e novas formas de representação social.

Esses são os actores do mundo problemático.


1] Veja, a propósito, Sévédé-Bardem, Isabelle, Précarités juveniles en milieu urbain african, "Aujourd'hui chacun se cherche". Paris: L'Harmattan, 1997, pp.32-57.
[2] Trabalho efectuado nas igrejas pentecostais de "cura divina", designadamente Zione e IURD (Igreja Universal do Reino de Deus).
[3] Marx, Karl e Engels, Friedrich, Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1976, p.46.
[4] A montante e a jusante do processo, as famílias dos doentes mentais acabam, elas também, por homologar o labelo psiquiátrico e por recusar aos seus parentes o estatuto da normalidade, como veremos mais à frente a propósito do hospital psiquiátrico de Nampula.
5] Saborosa frase de Achille Mbembe.
[6] Mas como gostava de dizer Norbert Elias, nenhum grupo humano é privado de ordem e de estrutura.
[7] Recursos de poder são instrumentos materiais e simbólicos que, porque raros uns, decisivos outros, são duramente disputados. Postos governamentais, cargos, viaturas, casas, diplomas universitários, dinheiro, representações do mundo social, definições, etiquetas, etc., são recursos de poder.

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