É nas cidades moçambicanas e no novo mundo da rua reinventada e refeita onde tem curso um permanente exercício de violência catárquica, onde gerações de modestos big men fazem diariamente o ritual da prova de força e da rixa corsária, onde a virulência dos protestos sociais e da crítica política é simultaneamente aguda nas palavras, nos gestos, na dança, no canto, nos provérbios urbanos e no chiste e amortecida pelo universo da informalidade (a qual afinal, é exemplarmente formal) e das redes de solidariedade, é nas cidades onde jovens adolescentes transformam os corpos em micro-empresas de aluguer de sexo pondo em causa o império dos homens atentos à tradição e à masculinocracia decisional[1], onde, como nas barracas e nos dumba nengues, actores das periferias se cruzam com actores do centro, aqueles sobrevivendo, estes acumulando.
É nas cidades onde os excluídos afluem, em massa, aos curandeiros e às igrejas[2].
Como escreveu um dia Karl Marx, "a angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia (…). Exigir que [o povo] renuncie às ilusões é exigir que ele renuncie a uma situação que precisa de ilusões."[3]
É nas cidades onde os problemas mentais, neurológicos e psicossociais dos excluídos desaguam com frequência nos hospitais psiquiátricos e onde a droga e o crime plural se tornam muitas vezes as saídas lógicas do mundo problemático. Depois, em prisões e hospícios, os que detêm o monopólio da criação das normas sociais e da definição dos critérios de transgressão esforçam-se por normalizar os que foram, afinal, objectivamente afastados por um sistema excludentemente cruel[4]. A montante e a jusante do processo, as famílias dos doentes mentais acabam, elas também, por sancionar o diagnóstico psiquiátrico e por recusar aos seus parentes o estatuto da normalidade.
É nas cidades onde muitos idosos e os deficientes se vêem a braços com a fragilização das redes tradicionais de protecção. As "romarias" de mendigos das sextas-feiras nas cidades moçambicanas são, a esse respeito, eloquentes.
É nas cidades onde as mulheres assumem novos papéis e, em muitos casos, passam a ser os sustentáculos financeiros dos lares, organizando todo um complexo processo de compra, venda e revenda.
É nas cidades onde circula o rumor, verdadeiro poor-man's bomb para dizer como Mbembe[5], verdadeira rádio rua que é ao mesmo tempo forma de produção de sentido e mecanismo de crítica social.
Estamos, verdadeiramente, perante um mundo urbano e peri-urbano, precário, contraditório e mestiço, entre o desemprego e o subemprego biscateiro, tido por muitos como anómico e caótico[6], mundo surgido da interacção e do conflito com outros mundos e com outros grupos sociais e da assimetria de recursos de poder[7].
Excluídos dos benefícios do bem-estar na ordem social vigente em Moçambique, os actores desse mundo periférico e mestiço criam uma contra-sociedade compósita, com novas regras, novos valores, novas identidades e novas formas de representação social.
Esses são os actores do mundo problemático.
1] Veja, a propósito, Sévédé-Bardem, Isabelle, Précarités juveniles en milieu urbain african, "Aujourd'hui chacun se cherche". Paris: L'Harmattan, 1997, pp.32-57.
[2] Trabalho efectuado nas igrejas pentecostais de "cura divina", designadamente Zione e IURD (Igreja Universal do Reino de Deus).
[3] Marx, Karl e Engels, Friedrich, Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1976, p.46.
[4] A montante e a jusante do processo, as famílias dos doentes mentais acabam, elas também, por homologar o labelo psiquiátrico e por recusar aos seus parentes o estatuto da normalidade, como veremos mais à frente a propósito do hospital psiquiátrico de Nampula.
5] Saborosa frase de Achille Mbembe.
[6] Mas como gostava de dizer Norbert Elias, nenhum grupo humano é privado de ordem e de estrutura.
[7] Recursos de poder são instrumentos materiais e simbólicos que, porque raros uns, decisivos outros, são duramente disputados. Postos governamentais, cargos, viaturas, casas, diplomas universitários, dinheiro, representações do mundo social, definições, etiquetas, etc., são recursos de poder.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
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