26 abril 2006

A lixeira de Hulene em 2001

Quando se entra na maior lixeira, a de Hulene na cidade de Maputo, é impressionante ver-se o espectáculo logo à entrada: em ambos os lados de uma estrada que a corta ao meio, encontram-se montes e montes de lixo fumarento, com centenas de pessoas de todos os sexos esgaravatando, curvadas, escuras, figuras sombrias vistas de longe:

"Ao observarmos as pessoas em plena actividade, ficamos com a impressão de estarem em plena actividade de colheita ou de sementeira".[1]

À entrada da lixeira encontra-se invariavelmente um grupo de jovens agressivos, poucos dados à fala, roupa suja, farda militar, brincos nas orelhas, tatuagens nos braços e antebraços, a maior parte fumando cigarros, com heróis normalmente procurados na música sul-africana. Só falam se lhes dermos dinheiro. Estão com frequência em conflito entre si ou com outros jovens, a luta faz parte do seu quotidiano, a sua linguagem está cheia de frases curtas, acusadoras, com muitos insultos à mistura. Muitos deles tentaram sem êxito encontrar um emprego na República da África do Sul, têm agregados numerosos nos quais vários são chefes de família. Muitos não têm pai ou têm os pais separados ou, ainda, estes estão desempregados, muitos deixaram de estudar por falta de recursos financeiros. Estão na lixeira porque todas as outras portas lhes foram vedadas. A responsabilidade, dizem, não lhes pertence. Solidariedade entre eles, xitique, interajuda? Não, cada um por si. Referindo-se ao Presidente da República e ao seu slogan de "futuro melhor" durante as eleições presidenciais de 1998, um jovem, falando em Shichangana[2], disse-nos:

"A hossi ya wena a y hinyiki n'tchumu! Himuvote le para futuro melhor! Hilei a futuro melhor ya cona! Huna hodla kolana [Estamos a desenrascar a vida porque o seu presidente nada nos dá! Votámos nele com vista um futuro melhor! Tal futuro é este que vivemos aqui! Comemos aqui, é esta vida do futuro melhor].[3]

Têm a consciência aguda de que há duas sociedades em Moçambique:

"Na sua óptica, nós, que não vivemos na lixeira, é que temos tudo (…) as pessoas confundem-nos com elementos do Governo, apesar de sempre explicarmos que somos estudantes-investigadores. Estão convictos de que são uma sociedade e de que nós somos outra vivendo em óptimas condições, beneficiando do bem-estar."[4]


Desconfiados, descrentes, eles opõem uma barreira imediata, hostil, a qualquer contacto. Mas se descobrem que podemos, de alguma maneira, ser-lhes úteis (a oferta de um cigarro, de alguns meticais, a convicção de que poderemos melhorar as suas vidas arranjando-lhes um emprego), tornam-se quase acessíveis. Quando assim acontece dão largas às suas histórias de vida, nas quais enxertam toda uma componente de onirismo social, tomando por concretizado o que ainda sonham, enchendo o passado de feitos dramatizados. Assim forjam identidades de substituição.
No interior da lixeira estão homens, mulheres com crianças de colo, crianças e adolescentes, idosos.
Existe uma pocilga pertencente a um trabalhador da Câmara Municipal. Os porcos destinam-se à venda. Há, também, um pequeno mercado, a cargo de senhoras, onde se vende sumo de morango, pão, badgia[5], maheu[6], xicaba[7], etc., tudo envolto em poeira e moscas.
A actividade lixeira tem três etapas:
A primeira, da primeira colheita, acontece quando os carros chegam à lixeira: aí, céleres, mais fortes, os jovens que se postam à entrada de manhã à noite saltam para as carroçarias e começam imediatamente a vasculhar e a seleccionar o "melhor" lixo.
A segunda, da colheita em profundidade, tem lugar depois que o lixo foi despejado. Acontece mesmo que o lixo chega a ser despejado juntamente com os jovens que lá estão dentro. Da vasculha encarregam-se então os mais velhos, as mulheres e as crianças. Os funcionários camarários podem antecipar-se aos jovens, recolhendo ao longo do percurso das viaturas até chegarem ao Hulene ou fazê-lo na segunda etapa.[8]
A terceira e última etapa consiste no preparo dos produtos recolhidos para venda. Esta tem duas modalidades: ou é feita a clientes fixos ou ocasionais que chegam para comprar o que está disponível ou são os próprios lixeiros que, por si próprios ou por intermediários, vendem ou mandam vender.[9]
De tudo um pouco se recolhe, se organiza, se reorienta e se vende: restos de comida, alimentos enlatados fora do prazo, objectos de ferro, alumínio, latão, estanho, fio de cobre, garrafas de vidro e plásticas, frascos diversos, madeira, cartão, papel, lixo hospitalar, pedras, filtros de cigarro, mobília danificada, cafulos[10] de coco[11], esponjas, algodão, vidro, borracha, etc., para venda nos dumba-nengues, em particular no Xiquelene. [12]
Os restos de comida são preparados na lixeiras e aqui consumidos.

[1] Chefo, Carlos, Diário de campo da lixeira de Hulene. Maputo: Agosto de 2001.
[2] Língua falada em Maputo.
[3] Ibid. Repare-se que o jovem não diz "o nosso presidente, mas "o seu presidente". Por outro lado, tenha-se em conta que a responsabilidade política não é imputada a um partido, mas a uma pessoa, ao Chefe.
[4] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[5] Espécie de bolo com a forma de uma rodela espalmada feito de feijão nhemba e que é comido frito.
[6] Bebida fermentada e açucarada feita de farinha de milho.
[7] Mistura de amendoim e de farinha de mandioca pilados e torrados.
[8] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[9] Ibid.
[10] Singular cafulo = casca.
[11] Serve, por exemplo, a modos de copo e de combustível.
[12] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.

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