É possível que a primeira notícia pós-colonial de crença no chupa-sangue date, na Zambézia, onde parece ter nascido, do fim de 1974 ou do princípio de 1975, quando os grupos dinamizadores se formavam. Terá, então, corrido o boato de que os GDs iriam «chupar» o sangue às pessoas.
Mas é em 1978/1979 que a crença se vai desenvolver plenamente nas comunidades rurais zambezianas, numa altura em que a Frelimo procurava criar o homem novo, em que eram correntes as campanhas de vacinação e de doação de sangue, a hostilidade rodesiana tinha curso e uma rádio anti-FRELIMO actuava no Malawi. As pessoas acreditavam que, à noite, seres estranhos penetravam nas palhotas e lhes chupavam o sangue com seringas, pela cabeça, enquanto dormiam. Milhares de Zambezianos passaram noites em claro gritando, batendo palmas, agitando panelas e outros objectos para afugentar os anamawula (sugadores de sangue, «vampiros»). Fazia-se fé em que o sangue era destinado ao fabrico de uma nova moeda, à consolidação da Independência nacional e ao abastecimento dos hospitais. Do ponto de vista governamental, o fenómeno foi imputado ao inimigo e ao obscurantismo.
A crença tornou-se recorrente e estendeu-se a Cabo Delgado e a Nampula. Em Cabo Delgado, mais particularmente em Pemba, ela apareceu em 1988 estreitamente associada no imaginário popular à mobilização feita pela Cruz Vermelha para obter doadores de sangue e ao suposto encaminhamento deste para o banco de sangue. Em Nampula, mais concretamente em Namialo, a crença tomou curso em 1991 no decorrer de uma epidemia de cólera. Em 1992 e 1995, ela reapareceu na Zambézia (doentes com sintomas de anemia e de malária, apresentaram-se nos hospitais queixando-se de que o seu sangue tinha sido «chupado») e, em 1995 também, em Nampula (estando esta província a braços desta vez com uma epidemia de meningite). Em todas as situações houve notícia de penúria de bens de consumo, de agitação social, de anomia, de intriga, de mentalidade linchadora e, aqui e ali, de linchamentos de supostos chupa-sanguistas. As pessoas acreditam sempre que o sangue lhes era extraído por seringas ou por extractores análogos. Os estereótipos vitimários podem ser demonstrados pelo facto de, anos atrás, em Nicoadala, na Zambézia, dois deputados de Assembleia da Républica e dois jornalistas terem sido tomados por «chupadores de sangue». Por outro lado, do ponto de vista dos crentes existe sempre uma associação entre a extracção de sangue e os funcionários governamentais ou partidários e os forasteiros. Mas, do ponto de vista governamental, tudo se resumia a situações subversivas objectivamente criadas em meios onde a credulidade é grande e a pobreza campeia. Havia, na verdade e por exemplo, evidências de ladrões tirando partido da situação para roubar as casas.
Mas vejamos mais em pormenor o contexto social do fenómeno:
· Contexto político revolucionário, com um forte apelo à mudança social
· Penúria de bens de consumo
· Campanhas de vacinação e de doação de sangue
· Guerra generalizada depois de 1982
· Epidemias
Vejamos, agora, as componentes básicas da crença:
· Sangue extraído pela cabeça
· Extracção feita através de seringas ou de objectos do mesmo género
· Extracção feita sorrateiramente à noite quando as pessoas dormiam
· Consequências da extracção: fraqueza e morte
· O sangue extraído destinava-se a aproveitamento exterior aos interesses das comunidades
· Extracção de sangue associada a funcionários governamentais ou partidários, aí compreendidos os da Saúde, mas também a simples forasteiros.
E, finalmente, vejamos algumas consequências da crença:
· Suspeita, intriga, cólera
· Estigma, mentalidade linchatória
· Imputação causal a todos os estranhos às comunidades
· Linchamentos
Quero sustentar que a crença é uma metáfora pela qual se traduzia e se compensava ao mesmo tempo a crise e a espoliação sociais. A recorrência destas dava sentido à vitalidade daquela.
Mas para compreender os que na Zambézia, por exemplo, acreditavam (e certamente ainda acreditam) no chupa-sangue, é fundamental situar a crença nas representações colectivas populares.
Na verdade, quando surge uma crise social faz-se fé em que ela é provocada por aqueles que se distinguem do comum das pessoas, pelos ricos ou pelos forasteiros, por todos aqueles que de alguma maneira expressam a diferença, a inovação ou o desacordo. Estas são as categorias de pessoas potencialmente portadoras de okwiri, cada uma delas é suposta ser um mukwiri (na terminologia cristã, ±= demónio ou seu portador), cada uma delas é suposta ser capaz de utilizar ratos, jibóias e outros animais para, à noite, por exemplo, roubar os celeiros dos outros. De um ângulo singularmente marxiano e actual, o padre Brentari, já falecido, escreveu o seguinte a propósito do meio propiciador da olowa (acção, endemoninhação ) do mukwiri:
«Para quem vive nas povoações é fácil descobrir a grande criação do mal: fome, sede, falta total de possibilidades e meios para o desenvolvimento humano e social; doenças, medos, vinganças, desuniões, opressões em toda a escala da criação: campo, animais, famílias...»
Ora, o chupa-sanguismo mais não foi nem é, em meu entender, do que uma reactualização politizada da crença acima exposta. Os funcionários governamentais, os forasteiros, etc., eram vistos como akwiri que extraíam, directa ou indirectamente, o bem-estar das comunidades. O sangue (= vida) é a tradução desse bem-estar: a sua punção (= a rarefacção dos bens de consumo), é a tradução do mal-estar. A única diferença nesta reactualização é que, permitam-me a expressão, o potencial linchatório não é descarregado sobre aqueles que são considerados como os verdadeiros responsáveis da espoliação. Ele é como que desviado para os focos habituais e locais de okwiri (mulheres idosas, forasteiros, etc.).
Assim, as pessoas tinham boas razões para acreditar no que acreditavam e acreditam. O chupa-sanguismo não é, portanto, uma crença pré-lógica, irracional, falsa. Ela expressava uma carência social variada.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
2 comentários:
Estava lendo sua entrada sobre chupa-sanguismo. Fantastico! Brilhante analise. Muito raro encontrar na net paginas como a sua. Muito parabens, estou fazendo mestrado aqui em SP. Vou ser leitora assidua.Ate!
Elia
Muito obrigado, Elia.
Enviar um comentário