Anos atrás fui co-director de um projecto bi-nacional de estudo da administração da justiça no país, projecto que abandonei a seis meses do fim quando já tinha demasiadas úlceras gástricas por e para aturar certas e imperiais e caseiras coisas.
Uma das janelas do projecto consistia em estudar as justiças alternativas e, nesse sentido, tornou-se imperativo o estudo de como os chefes tradicionais (com frequência chamados régulos) administravam a justiça.
Um régulo que habita na periferia da cidade da Beira foi um dos escolhidos por mim.
Algum tempo depois, descobri, com os meus colegas, que esse chefe era menos tradicional do que se dizia. Na realidade, ele era bem moderno.
Assim, tinha um bem montado arquivo no seu gabinete de atendimento. De tudo ele sabia no seu regulado, cada movimento dos seus súbditos era observado e registado. Cobrava impostos, aplicava penas pecuniárias, tinha um cárcere privado e dois tipos de polícia: uma, de jovens, para deter jovens; outra, de idosos, para deter idosos.
A sua sala de julgamentos estava invariavelmente cheia todos os dias. As pessoas chegavam informalmente, sentavam-se e assim o chefe chegava a ter três ou quatro problemas a resolver ao mesmo tempo, problemas e sentenças que o seu escrivão criteriosamente anotava em cadernos escolares. A sua conhecida gestão dos espíritos simultaneamente atraía e atemorizava.
Acresce que o chefe possuía um cemitério privado, o único que não alagava no período das chuvas. Para cada morto, uma taxa a pagar.
No dia em que lá fui, com alguns colegas, foi feita a cerimónia de apaziguamento dos espíritos em nossa honra. Para o efeito, o chefe colocou junto a uma das paredes de um compartimento da sua sede, duas bolachas Maria, uma coca-cola, dois cigarros SG, um copo com vinho, uma cerveja namíbia e um pouco de pombe. Foi com essas coisas que o chefe invocou os espíritos, espíritos naturalmente exigentes e também bem modernos e multifacetados.
Perfeitamente interessante este chefe, que se vangloriava de gerir 17 espíritos, um dos quais renitente, porque muçulmano.
P.S. Mais tarde, foram publicados dois grossos livros com o estudo. O texto que eu redigira sobre esse chefe apareceu com vários nomes de autores, menos o meu. Certamente foi o espírito recalcitrante do espírito indomável do chefe quem assim o quis. Paz à sua alma.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
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