Podemos dividir os seres humanos em duas categorias processuais extremas, certamente de uma maneira maniqueísta: as do mundo não-problemático e as do mundo problemático (excluímos as categorias intermediárias)[1].
Os habitantes do primeiro têm possibilidades permanentes de transformar o problemático no não-problemático graças ao seu capital de recursos vitais assegurados (alojamento, alimentação, emprego, acesso a serviços dignos de saúde e ensino, sociabilidade plural, etc.). Eles vivem uma cidadania.
Mas já assim não acontece no outro mundo: neste, é necessário lutar duramente para garantir as bases reprodutivas da vida, cada dia é uma batalha dura no problemático, na busca sem tréguas de recursos vitais. Por isso os seus habitantes não vivem, mas sobrevivem prisioneiros da sua infra-cidadania[2]. Pense-se, por exemplo, nas crianças da rua ou nos mendigos das romarias de sextas-feiras em Maputo, que estão sempre “em cima da lâmina”, como diria o cantor moçambicano Jeremias Ngwenha.
No primeiro mundo temos estratégias de vida: portadores de um “lugar” e de um “próprio”, os seus actores trabalham para criar, proteger e reproduzir as regras do bem-estar.
No segundo mundo temos tácticas de sobrevivência: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um “próprio”, eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade”. Como diria Michel de Certeau, o que aí se ganha não se guarda.[3]
Esse é, finalmente, o mundo multidimensional da marronização[4]: os seus actores não são escravos[5] que se furtam, como outrora nas Américas, aos senhores e aos agressores, desorientando-os em caminhos e abrigos escusos, mas actores de um processo que os exclui, que os mutila e que por isso percute a afirmação de uma cultura rizomática, profundamente oxímora, na qual a alteridade se joga pelo contra espacial, identitário, ocupacional, bricolado e simbólico.
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[1] Estamos conscientes das muitas questões que ficam omissas, indefinidas, na penumbra deste maniqueísmo. Mas também estamos conscientes de que ele pode suscitar um vivo debate, o que seria salutar.
[2] Lanzarini, Corinne, Survivre dans le monde sous-prolétaire. Paris: PUF, 2000, pp.1-11.
[3] Certeau, Michel de, L'invention du quotidien 1. arts de faire. Paris: Gallimard/Folio essais, 1990, pp.59-63.
[4] Este termo é retirado de Houtart, François et Remy, Anselme, Haïti et la mondialisation de la culture, Étude des mentalités et des religions face aux réalités économiques, sociales et politiques. Port-au-Prince/Paris/Montréal: CRESFED/L'Harmattan, 2000, pp.20,179-183. Agradecemos a François Houtart a oferta da obra. Veja, também, Canevacci, Massimo, Sincretismos/Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996, pp.26-29.
[5] Chamados marrons.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
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