31 janeiro 2008

Estudar aqui?


Leia o que a estudante de arquitectura na foto à esquerda escreve no seu blogue sobre as crianças que é suposto irem estudar em tendas como a da imagem à direita.

Angoche Parapato Oweto


Novos dados sobre as crianças do camião

O Governo Provincial de Manica comprou vestuário diverso, incluindo calçado, bem como alimentação, para que viajavam em condições desumadas num camião interceptado anteontem pela polícia. Um dos pais veio de Nampula e, estando neste momento em Chimoio, afirmou que sabia do transporte, mas ignorava as condições em que as crianças estavam a ser transportadas. Esse pai está em Chimoio para negociar o regresso das crianças a Nampula. Entretanto, no camião viajavam também três ou quatro adultos de cerca de 25 anos, que estão encarcerados. Consta que a descoberta do camião deveu-se ao facto de uma criança ter ficado em terra junto ao rio Save, chorando, o que, depois, despertou a desconfiança da polícia. Amanhã a Rádio Moçambique vai apresentar uma reportagem especial sobre o tema - informação telefónica prestada há momentos pela jornalista Isaura Afonso em Chimoio, a quem muito agradeço.

Abortado desfalque de seis milhões de dólares?

Em caixa sombreada, o semanário "Zambeze" de hoje escreve que a presidência da República abortou recentemente um desfalque de seis milhões de dólares "prestes a serem sacados do Tesouro". O semanário diz que a mega-operação fraudulenta foi denunciada ao presidente da República por um alto funcionário sénior do tesouro ao verificar que figuras ligadas ao poder executivo e judicial haviam submetido ao Estado "uma série de projectos fantoches que não apresentavam nenhum estudo de viabilidade económica". As pessoas que foram beneficiadas com os fundos tiveram de os devolver - diz o semanário. Finalmente, o "Zambeze" afirma que que nenhuma fonte oficial se "dispôs ainda a dar detalhes sobre este assunto" (p. 3).
Esta é uma notícia cujo conteúdo é, evidentemente, muito grave. Creio ser sensato esperar que alguém do Estado ou da presidência da República se pronuncie.

Património de chefes de Estado africanos em França

Um trabalho no "Le Monde": "É um mundo encantado no qual navegamos duma villa de 9 peças com piscina em Nice a um hotel particular no Oeste parisiense. Um universo surrealista povoado de Bugatti pagos cash por mais de um milhão de euros. Um microcosmo constelado de uma miríade de contas bancárias. Oligarcas russos? Reis saudistas do petróleo? Estrelas de Hollywood? Não: chefes de Estado africanos produtores de petróleo na sua maior parte, mas cujas populações se contam entre as mais pobres do planeta."
Se não lê francês e quer ler em português, use este tradutor aqui. Obrigado ao Ricardo, meu correspondente em Paris, pelo envio da referência.

De novo racismo e etnicidade (2) (prossegue)

Esses dois processos têm curso no contexto da relação "estabelecidos"/intrusos". Os "estabelecidos" (proprietários, "donos da terra", partido no poder, detentores de cargos governamentais, empresários, etc.) tudo farão para continuar a ser detentores de recursos; os "intrusos" esforçar-se-ão por questionar os "direitos adquiridos" e/ou desalojar os primeiros. Atacar os "direitos adquiridos" é considerado pelos primeiros como atacar a ordem estabelecida. Toda a ordem jurídica e judiciária está estruturada para assegurar esses direitos e punir as infracções. Os gestores dessa ordem tudo farão para apresentar os seus interesses como interesses de todos, como interesses universais desde sempre existentes, como interesses naturais.
É aí que toma curso todo o mundo conflitual da estruturação simbólica e categorial do Outro.
Termos como chingondo, monhé, etc., ou expressões como os landins são inteligentes, os Manhungwe não prestam, os monhés só sabem fazer comércio ou, ainda, os gajos do Sul estão-nos a pilhar ou os Maquilimane só sabem roubar, contêm ao mesmo tempo uma prática, uma história e uma memória em constante reactualização (ainda que os seus utilizadores possam não estar conscientes disso e se limitem a veicular, a fazer e a recordar o que se tornou "hábito", costume do grupo, etc.): (1) a prática da interacção social e da disputa de recursos de poder, (2) a história de como se fez ou se faz a intersecção e a disputa pelos recursos de poder e (3) a memória que se reactiva ou se reactualiza consoante a intensidade dos contactos.
Julgamos muitas vezes que é a cor da pele ou o apelido que nos leva a incluir alguém num grupo diferente. Mas seria mais pertinente começar por estudar a história que está por trás disso.
A interacção social faz, portanto, comunicar, mas também colidir. Nela coabitam lógicas de inclusão e de exclusão.

Oleoduto e infra-estruturas turísticas

Enquanto um jornal informou que "a empresa Venessia Petroleum do Qatar foi contratada para construir um oleoduto entre a cidade da Beira, Moçambique, e Nsanje, no Malaui", um outro informou que empresas sul-africanas estão a ser encorajadas a formar uma parceria com congéneres moçambicanas para construção de dois grandes lodges e um campsite no Grande Parque Transfronteiriço do Limpopo." Obrigado ao Ricardo pelo envio da referências.

Moçambique ainda não implementou Convenção Anti-Corrupção da ONU

Nota de imprensa do Centro de Integridade Pública: "Maputo, 30 de Janeiro de 2008) O Estado Moçambicano ratificou em finais de 2006 a Convenção Anti-Corrupção das Nações Unidas (CAC-ONU), mas nem o Governo nem a Assembleia da República (AR) estão a fazer esforços para que a mesma seja implementada. Os países subscritores da CAC estão a participar numa reunião em Bali, na Indonésia, designada Conferência dos Estados-Parte, de 28 de Janeiro a 1 de Fevereiro, tendo como objectivo avaliar o estágio da implementação da convenção pelos países que a ratificaram (...) Moçambique não mandou nenhuma delegação de alto nível para Bali, o que pode ser indicador de um fraco cometimento do Governo para com a implementação da convenção. No actual quadro constitucional moçambicano, a ratificação sugere que a Convenção é parte da legislação doméstica e, nesse sentido, pode informar sobre medidas a tomar em casos criminais específicos ou mesmo inspirar novas leis, ou a melhoria das leis ja existentes, sobretudo porque as convenções internacionais não prevêem molduras penais, ou seja, não dizem as penas para os crimes que estabelecem."

Quase nos 100 mil e no 2.º aniversário

Este diário aproxima-se da chapa 100 mil no número de leitores e do 2.º aniversário a 18 de Abril.

Gemuce (2)



Artista plástico e professor de Anatomia Artística, Desenho Analítico, Pintura e Comunicação Visual na Escola de Artes Visuais em Maputo; licenciado em Belas Artes, Instituto de Belas Artes de Kiev, Rússia; mestre em Pintura de Murais, Academia de Belas Artes, Ucrânia 2000/01; mestre em Concepção e Gestão de Projectos Culturais, Faculdade de Formação Internacional Cultural, Paris, França. Eis aqui um dos mais expoenciais pintores moçambicanos: Gemuce. Conheci-o em Paris, não me ocorre agora o ano. Trato fino, homem culto, uma sensibilidade admirável, um artista excepcional. Muito obrigado, Gemuce, pela cedência do vídeo.

30 janeiro 2008

Kennedy ao lado de Obama


De: Sen. Ted Kennedy
Data: 01/30/08 22:21:10
Para: Carlos Serra
Assunto: I'm with Obama
Dear Carlos,
When I endorsed Barack Obama on Monday, I was also endorsing a candidate with the power to transform America.
As President Kennedy said in 1960, "It is time for a new generation of leadership."
This campaign is about a new generation of leadership today. A generation ready to be part of something bigger than themselves. A generation ready to change the country, and a generation ready to change the world.
I'm doing everything I can to elect Barack Obama. With less than a week before my state and 21 others make their voices heard, there is no time to lose.
Like my son Patrick and my niece Caroline, I have found a new generation of leadership for America in Barack Obama -- and I hope you have too!
Sincerely,
Senator Edward M. Kennedy
Nota: se quer traduzir a carta do senador Kennedy para português, use este tradutor aqui. E leia ou recorde Obama aqui e aqui.
Adenda: entretanto, John Edwards abandonou a corrida para a nomeação presidencial democrata. Obrigado ao Nelson da Beira por me ter chamado a atenção para esta notícia.

Suspeita de tráfico: interceptado no Inchope camião com 40 crianças vindas de Nampula

Em primeira mão na blogosfera: um camião com 40 crianças de idades entre os sete e os 11 anos, vindas de Nampula, foi ontem interceptado pela polícia no Inchope. O condutor afirmou que as crianças vinham a coberto de autorização dos pais e que se destinavam a Maputo, onde iriam frequentar cursos de liderança religiosa. A polícia afirmou que isso é falso e que não era a primeira vez que ele carregava crianças. Ouvidas algumas crianças, estas afirmaram que tinham sido enganadas. Neste momento, as crianças estão no Infantário Provincial de Chimoio, a cargo dos serviços de Saúde e da Acção Social - informação telefónica prestava pela jornalista Isaura Afonso, da Rádio Moçambique em Chimoio, a quem agradeço a gentileza. Conto dar mais pormenores amanhã. O meu agradecimento especial ao Miguel César que me alertou, telefonicamente também, para o caso.
Recordo que tratei o tema do tráfico num livro (capa na imagem), cujo resumo foi este: "O tráfico de menores é uma realidade em Moçambique, confirmado pela imprensa, por estudos de casos e por percepções populares, dando origem a uma grande preocupação social. Tatá papá, tatá mamã é como ele é, regra geral, identificado nos bairros periféricos de Maputo. O tráfico laboral e sexual para a África do Sul e o tráfico para extracção de órgãos são as duas modalidades mais visíveis. Bem menos visível é o tráfico laboral infantil, num país onde existem quatro milhões de crianças e de adolescentes em situação de fragilidade social. O exemplo de 35 crianças traficadas em 2005 na província de Manica para serem vendidas em farmas locais a 100 mil meticais cada uma é profundamente trágico. Vulnerabilidades sociais e institucionais facilitam e ampliam o tráfico. Várias medidas são necessárias, entre as quais a actualização do Código Penal (datado de 1876) e o imperativo de prever expressa e directamente o crime de tráfico."
Comentário: é muito difícil aceitar que pais dêem autorização a filhos de sete a onze anos para saírem de Nampula e irem para Maputo frequentar cursos de liderança religiosa.
Adenda a 31/01/07: leia um relato mais desenvolvido no "Notícias" aqui.

Quénia ontem

O Quénia, onde a situação política se agrava, tem sido tema frequente neste diário. Leia ou recorde aqui e aqui. Agora veja este vídeo colocado no youtube e datado de ontem:

Alerta: reassentados em Mopeia recebem farinha de milho misturada com diesel

O jornalista António Zefanias relata no semanário "Magazine Independente" de hoje uma grave situação: "O Governo de Moçambique decretou a retirada compulsiva das pessoas que vivem nas zonas baixas, como forma de as salvar da morte eminente. É assim que, quando as pessoas são retiradas, desta maneira, a compulsiva, são reassentadas em centros abertos, onde, porém, se vive uma autêntica penúria. Dorme-se ao relento, com crianças e mulheres grávidas sujeitas a todos os riscos. Mas, o mais grave ainda é que, no centro de reassentamento 24 de Julho, em Mopeia, na província central da Zambézia, aberto nas cheias de 2006 e ainda eivado de inúmeros problemas, as autoridades governamentais foram doar farinha de milho misturada com diesel, como se as pessoas fossem automóveis de locomover-te a motor de explosão! Resultado: vómitos..." Fontes ouvidas pelo jornalista disseram que o processo de distribuição de comida anda "conturbado", pois, apesar do alerta do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, a distribuição faz-se sem inspecção prévia dos produtos graças a "certas pessoas" não identificadas.
Comentário: este é um fenómeno que exige uma imediata investigação. Oxalá que alguém do governo esteja a ler este diário.

Moçambique: justiça formal inacessível aos pobres devido à corrupção

Correio da Manhã, citando um relatório do Banco Mundial : "Os elevados custos cobrados na tramitação dos processos e a prevalência de gritantes casos de corrupção estão a tornar o sistema formal da Justiça em Moçambique inacessível a pobres, segundo o Banco Mundial (BIRD) na sua avaliação sobre pobreza e vulnerabilidade em Moçambique. (...) O documento revela que cerca de 35% de famílias entrevistadas consideraram que foram obrigadas a pagar suborno para verem resolvidos os seus problemas pelos tribunais, com a Polícia da República de Moçambique (PRM) a aparecer como a quarta instituição mais corrupta do país, depois das Alfândegas, Justiça e Educação."

Global Integrity Index: Moçambique não melhora desempenho

"(Maputo, 30 de Janeiro de 2008) A posição de Moçambique nos Indicadores de Integridade da organização Global Integrity (GI) não melhorou de 2006 para 2007, tendo até piorado nalgumas áreas, como por exemplo na área da Responsabilidade do Governo. No geral, Moçambique recebeu a classificação de "muito fraca" no que diz respeito à Governação e Integridade. No ano passado, o GI tinha atribuído a mesma nota negativa. Isto significa que, apesar do discurso enérgico anti-corrupção e pró-integridade e apesar da existência de uma Reforma do Sector Público e de uma Estratégia Anti-Corrupção desde Abril de 2006, as reformas ou não estão acontecer ou estão a ser feitas a um ritmo cujo impacto ainda não é perceptível. O mais recente relatório do GI é lançado hoje em Washington. O documento analisa o estado da integridade em vários países, concentrando-se na avaliação da existência e eficiência dos mecanismos de prestação de contas e de transparência" (confira aqui e aqui e aqui; obrigado ao Marcelo Mosse pelo envio da referência; ao Ricardo pelo envio, também, do portal do relatório).

Camponeses espancados na Manhiça por protestarem contra capitalocracia rural

Uma impressionante frente policial constituída pela Força de Intervenção Rápida, pela Polícia de Protecção e por agentes do Serviço de Informação e Segurança do Estado, fortemente armada (incluindo gás lacrimógéno e "potentes viaturas") abortou uma manifestação pacífica e espancou camponeses da Manhiça que exigiam a tomada de "medidas imediatas para travar acções de pessoas e empresas que, tendo como interesse central, o lucro e a riqueza, exploram os associados da Manhiça". Os camponeses, que disseram não terem armas de fogo, queriam entregar aos governos distrital e municipal um manifesto no qual exigiam "o fim da usurpação de terra pelos privados". A União Nacional dos Camponeses afirma não ter perdido a batalha e que a marcha de protesto será reactivada no dia 17 de Abril, dia do camponês - isto vem hoje reportado na edição do "Magazine Independente", em trabalho do jornalista Celso Ricardo, que exibe os testemunhos de dois camponeses agredidos, um dos quais ficou com um braço fracturado (p. 5).
Comentários: 1) quero acreditar que a procissão vai ainda no adro no tocante à penetração rural e ao impacto do grande Capital latifundiário; 2) é notável verificar como num distrito rural distante de Maputo surge uma tão espantosa concentração de forças policiais e de segurança do Estado; 3) faz muito que não se via na imprensa local uma descrição que fosse para além da fotografia superficial dos conflitos e aflorasse claramente o que está em jogo: camponeses associados frente ao grande Capital latifundiário; 4) fiz uso no título de uma palavra extraída de uma outra de Mussa Raja: capitalocracia.

29 janeiro 2008

Os dez mais ricos de Moçambique segundo "bosses"

Está no blogue do bosses a lista dos dez mais ricos de Moçambique:
1. Armando Guebuza
2. John Kachamila
3. Joaquim Chissano
4. Mohamed Bashir Sulemane (MBS)
5. Magid Osman
6. Mário Machungo
7. Hermenegildo Gamito
8. Eneas Comiche
9. Octávio Mutemba
10. Lourenço do Rosário
Observação: dos dez, apenas os quarto e décimo classificados nunca fizeram parte do elenco governamental.

Especial Moçambique: vídeo brasileiro

Sugiro-vos que vejam aqui um vídeo brasileiro sobre o nosso país, sobre Maputo. Vixe, é belo, você vai gostar, começa com uma bela marrabenta!
Grande kanimambo ao Ricardo, meu correspondente em Paris, pelo envio da referência!

Gemuce (1)



Artista plástico e professor de Anatomia Artística, Desenho Analítico, Pintura e Comunicação Visual na Escola de Artes Visuais em Maputo; licenciado em Belas Artes, Instituto de Belas Artes de Kiev, Rússia; mestre em Pintura de Murais, Academia de Belas Artes, Ucrânia 2000/01; mestre em Concepção e Gestão de Projectos Culturais, Faculdade de Formação Internacional Cultural, Paris, França. Eis aqui um dos mais expoenciais pintores moçambicanos: Gemuce. Conheci-o em Paris, não me ocorre agora o ano. Trato fino, homem culto, uma sensibilidade admirável, um artista excepcional. Muito obrigado, Gemuce, pela cedência do vídeo.

O feitiço é estrangeiro

Luanda, 29/01 - O vice-ministro da Saúde, José Van-Dunem, afirmou hoje, terça-feira, que os estudos indicam que a epidemia da Sida se regista de fora para dentro e há uma certa influência dos países vizinhos, pelo que as províncias que fazem fronteira são portas de entrada da doença no país."
Comentário: independentemente da verdade epidemiológica do vice-ministro, é interessante esta projecção no Outro, no estranho, no estrangeiro, dos males que nos afectam. O feitiço é estrangeiro, o xicuembo não é nosso. Obrigado ao Maximianio pelo envio desta pérola epistemológica.

De novo racismo e etnicidade (1)

Como reparam, regresso uma vez mais ao racismo e à etnicidade.
Racismo e etnicidade são formas elementares de interacção social e não exercícios fenotípicos de origem, não sendo mais do que subprodutos de um mesmo fenómeno político: a luta inter-grupos pelo acesso privilegiado a recursos de poder raros. Por outras palavras, racismo e etnicidade nascem com eles, a partir daí e não antes.
Poder? Poder não é uma "coisa", mas a capacidade de um grupo conseguir que nas suas relações com outro grupo ou com outros grupos os termos de troca lhe sejam favoráveis.
Para chegar a essa situação de "direitos adquiridos", os actores munem-se de recursos estratégicos, recursos de poder, como sejam o controlo dos aparelhos do Estado, de normas, valores, estatuto social, riqueza material, honra, formação escolar, anterioridade de chegada, interpretação da história, etc.
A interacção social é, nesse sentido, portanto, assimétrica. Uma sociedade constitui-se diferenciando-se e excluindo. Como escreveu alguém, formar um grupo "é criar estrangeiros". Uma estrutura bipolar, essencial a toda a sociedade, coloca um "de fora" para que exista um "entre nós"; fronteiras, para que se desenhe um país interior; "outros", para que um "nós" tome corpo".
É nesse contexto que nasce e se fossiliza o que Freud chamou "narcisismo das pequenas diferenças", uma "pulsão instintiva" que acaba por aparecer, afinal, como que natural e estrangeira às relações sociais e à sua conflitualidade.
Mas esses "narcisismos" têm origem quer nas diferenças de classe, quer nas diferenças regionais. A este último nível tem curso o conflito a que chamo centro/periferia (isto não significa esquecer a multiplicidade de situações, colectivas e individuais, geradoras e reprodutoras de ambos os fenómenos).
Com efeito, o conjunto de actores gestores de "direitos adquiridos" vive numa configuração social, digamos num país, na qual um centro produtor (que participa da natureza do sagrado) das regras, das crenças e dos valores (a capital do País, a capital de uma província) está confrontado com uma periferia (o resto do País, o resto da província).
Os que estão na periferia relacionam-se com os que estão no centro através de um sentimento ambivalente de ciúme, repulsa e imitação.
Entre os mais sensíveis ou os mais inteligentes da periferia, pode surgir a sensação exacerbada de se encontrarem marginalizados da zona vital do centro.
As relações assimétricas dão origem à produção de imagens constantes e unificadas sobre o Outro, a essências supostas imutáveis e "automáticas" chamadas estereótipos.
Esses estereótipos são, ao mesmo tempo, (1) exercícios de identificação que confortam a imagem de honra que os grupos e as pessoas têm de si e (2) armas de combate na luta pelo acesso a recursos de poder raros.
Adaptado de Serra, Carlos (dir), Racismo, etnicidade e poder. Um estudo em cinco cidades de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária, 2000, pp. 22-24.

Quem é o inimigo? (5) (prossegue)

Prossigo esta série (há muita coisa por investigar com profundidade e por isso o que aqui tento é apenas um conjunto pequeno de hipóteses). O grupo revolucionário da Frelimo tem um objectivo: o de construir uma sociedade diferente, mais justa, mais solidária. Primeiro Mondlane, Samora depois, disseram e escreveram que não fazia sentido manter intactas as estruturas do sistema capitalista. Construir o homem novo, slogan da época, traduz a busca de um futuro diferente, digamos que milenarista. As frentes da saúde e das escolas, por exemplo, são um testemunho do enorme desejo de aí chegar. Mas a rígida e quase puritana ordem político-militar da guerrilha (decalcada nas cidades e para todo o país rural através de roldanas políticas cerradas), por um lado, o rolo compressor do discurso classista por outro (conjugado com um tecnocratismo intransigente e estrangeiro às possibilidades diferentes de fazer coisas e de tentar mudar a vida das pessoas), encontram vários tipos de resistência. O conjunto dessas resistências (a palavra sabotagem aparece imenso nos escritos jornalísticos da época, muitas vezes associada à candonga e ao cartoon político da época, o do xiconhoca) despoleta o conjunto das duras medidas tomadas pela Frelimo contra o que entende serem múltiplos inimigos, antigos e presentes: afixação pública das biografias daqueles que participaram nas estruturas ideológico-repressivas do aparelho de Estado colonial, chicotadas, fuzilamentos, campos de reeducação, operação produção dos anos 80 e ofensiva político-organizacional (esta ofensiva procurou fazer face como que à inércia do social). A intimidação permanente operada pelos regímens racistas e capitalistas da África do Sul e da Rodésia do Sul, traduzida por múltiplas acções - entre as quais as militares - torna os revolucionários mais agressivos, mais intransigentes. A combinação da intimidação externa com a agressividade revolucionária interna dá origem, entre outros fenómenos, ao surgimento de um movimento de guerrilha que hoje se chama Renamo.
Nota: a qualquer momento posso rectificar algo neste texto. Caso isso venha a acontecer, colocarei a vermelho as partes modificadas ou acrescentadas.

Há dias o pão, agora os chapas

Há dias foi o preço do pão que subiu em Maputo. Agora é o problema dos chapas: na sexta-feira, em Nampula, operadores de chapas amotinaram-se exigindo o aumento da tarifa de cinco para dez meticais, privando a cidade do chamado transpoorte semi-colectivo (edição de ontem, p. 9). Ontem, no Bairro da Matola J, província do Maputo, as pessoas ficaram zangadas quando "um grupo de transportadores semicolectivos de passageiros, da rota Matola “J” Mavoco, decidiu alterar a tarifa de passagem de 5 para 7.50 meticais", perturbando os pequenos agricultores que desse meio de transporte se servem.
Comentário: creio que muitas vezes na vida os grandes problemas começam quando os pequenos problemas (ou que parecem pequenos problemas) aparecem associados no imaginário social, bastando, depois, uma pequenina coisa para os agigantar. E nestas situações a exasperação não tem portas.

Não é o povo quem decide

O Mussa Raja escreveu no seu blogue um texto com o título "Democracia ou Capitalocracia?" e terminou-o assim: "Não é o povo que decide, mas pura e simplesmente um pequenito grupo de pessoas que aproveitam da inocências de alguns para manipular o sistema."
Mas lá encontra outros textos com temas curiosos.

28 janeiro 2008

Dois blogues

Espreite este dois blogues aqui, ambos nascidos este mês: o primeiro, moçambicano, creio que de uma estudante de arquitectura; o segundo, brasileiro, de uma mulher que diz ter 19 anos.

África do Sul: minas paralizadas, sindicatos com receio

A penúria de electricidade na África do Sul paralizou hoje a produção nas minas da primeira potência económica do continente pelo quarto dia consecutivo, enquanto os sindicatos exprimem receio quanto ao impacto da crise energética nos empregos. Para ler em português, use este tradutor aqui.
Obrigado ao Ricardo, meu correspondente em Paris, pelo envio da referência.

Obama: o discurso da vitória na Carolina do Sul


Veja aqui, no youtube, o vídeo do discurso da vitória do candidato democrata norte-americano Barack Obama no Estado de Carolina do Sul. Imagem reproduzida daqui.

Para que servem tribo e raça? (4) (prossegue)

Naquele dia, no Bairro do Equilíbrio, era uma manhã linda, estavam as pessoas em seus diferentes misteres, quando, na esquinas entre a Rua dos Originários e a Rua dos Que Não Conhecemos, o Sr. Jorreba Aquilave, pacato pequeno empresário da pecuária, em cima de um estrado improvisado, lenço vermelho ao peito, camisete vermelha com os dizeres "Partido da Renovação Originária", começou numa arengação jamais vista no bairro, enquanto o seu pequeno corpo ficava inchado de repente. Foi assim a primeira parte:
"Meus irmãos, todos vocês me conhecem e sabem que sou da tribo dos Aquilaves. Foram os Aquilaves quem primeiro chegou aqui e trouxe bois, chegámos de lá, da terra Aqui Há Riqueza. Antes de nós chegarmos, ninguém aqui sabia o que era carne de boi, leite de vaca, quejo de leite. Aqui era só terra e costumes de selvagens. Aqui chegámos - fez lentamente circular a mão direita pelo horizonte -, aqui chegaram outros da nossa raça dos vermelhos, da nossa raça de apstores. Aqui temos o nosso gado, esta terra é nossa desde os tempos, este bairro tem a nossa marca, tem o nosso sangue. Irmãos, somos Originários aqui. Mas agora, Irmãos, tenho ouvido dizer que anda gente aí dos Segundos-Chegados a dizer que também é daqui, que também tem direito de ser Originários. Vejam só! Quem são esses Segundos-Chegados, esse gente pequenina que fala língua de quizumba, que não sabe ler nem usar sapato nem sabe o que é ferro de engomar, que anda de bicicleta sem câmara-de-ar, essa gente que não sabe comer na mesa, essa gente que provoca trovoadas e que enche o bairro de feitiço estrangeiro e que anda nos chatear com suas mandiocas e seus milhos entrando nas nossas terras de pasto? Quem são esses chingondos? Esses chingondos, Irmãos, são gente para nos provocar, nos causar doenças. Sim, são vermelhos como nós, mas são vermelhos inferiores, vermelhos estrangeiros, vermelhos atrasados. E têm esses outros aí, esses Vive-nas-Fronteiras, esses castanhos que só conhecem a cor do dinheiro e só casam entre eles! E têm esses azuis, essa gente que colonizou todo o mundo durante mil anos! Por isso Irmãos Originários, só há uma solução para haver paz e riqueza para todos no nosso bairro, essa solução é que só eu posso ser o presidente do Bairro, com o meu partido, o glorioso Partido da Renovação Originária. Não há outra solução. E vocês que não são vermelhos, vocês Segundos-Chegados, vocês castanhos Vive-nas-Fronteiras e vocês azuis Empobrecidos, mais vocês da cor que não se sabe qual é nem azeite nem vinagre ninguém sabe nem Deus, vocês todos precisam confiar-me pois se me confiarem vocês serão recompensados".
De repente outras coisas inauditas aconteceram ali, no Bairro do Equilíbrio, onde havia já uma multidão, espanto na boca, desorbitação nos olhos, que foi chegando por ondas sucessivas. Uma mulher, lenço vermelho e uma camisete estampada com os dizeres "Frente da Mulher Originária", levou um copo de água ao orador, enquanto um homem, também de lenço vermelho e camisete estampada com os agora conhecidos dizeres "Partido da Renovação Originária", abriu um enorme guarda-sol vermelho e foi proteger a cabeça careca do Sr. Aquilave do sol inclemente que se fazia sentir. Mas não só: buzinando sem parar, chegou um jipe militar em grande velocidade, com quatro homens enormes, de camuflado vermelho e armados de metralhadoras, o jipe parou bruscamente levantando uma enorme nuvem de poeira, três dos homens saíram e colocaram-se em pontos estratégicos em redor do orador, caras patibundas, olhando suspeitosamente todos os presentes.
Nota: a qualquer momento posso modificar algo aqui. Se isso suceder, assinalarei com uma cor distinta no texto a modificação ou o acréscimo.

Da pobreza vista por Matavel à sociologia para a combater

O jornalista Jorge Matavel diz que a vila da Manhiça esconde pobreza: "No distrito da Manhiça, província de Maputo, tal como em todo o país, a vila esconde por detrás dela um cenário verdadeiramente crítico de pobreza absoluta. Para quem vai à vila sede do distrito da Manhiça, ou passa apenas por ali e observa algumas infra-estruturas, fica com uma impressão errada do que está realmente a acontecer com a população da Manhiça. Parece uma coisa mas a realidade escondida é outra. O nível de pobreza extrema é dramático."
Enquanto isso, o Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane criou um mestrado em Sociologia Rural e Gestão de Desenvolvimento. O programa tem logo à cabeça esta frase estimulante: "Ser um agente de combate à pobreza nas zonas rurais".

O Paulito de Alexandre Chaúque

O Alexandre Chaúque, do "Notícias", escreveu uma bela crónica sobre o Paulito, com o seguinte cabeçalho : "O comportamento de um pobre resume-se nisso mesmo: quando lhe cai dinheiro nas mãos já não sabe o que faz. No lugar de sentar e planear o valor que recebe - ou do seu suor ou de uma dádiva - estica todas as bandeiras que tem e que não tem e sente-se imperador. Alarga os ombros e enfia as mãos nos bolsos assobiando alto músicas que nem sequer conhece. Comprará roupas novas. Irá ao barbeiro fazer o corte de cabelo e todo o bairro saberá que Paulito ganhou lotaria."
Comentário: se pegássemos no texto e procurássemos transformar o seu conteúdo em conteúdo social, em conteúdo colectivo a certos níveis, poderíamos ter os nossos estudantes a fazer excelentes trabalhos de pesquisa.

E lá roubaram as redes mosquiteiras

Segundo o blogue do bosses, o jornal nortenho Faísca escreveu que, na província de Niassa, "quantidades significativas de rede mosquiteiras foram roubadas do Depósito Provincial da Saúde de forma estranha, atrasando a luta contra a Malária. O roubo segundo a polícia, na pessoa do seu porta-voz, Alfredo Fumo, aconteceu de forma muito estranha porque não houve arrombamento de nenhuma entrada. As redes mosquiteiras roubadas fazem parte do Programa Nacional de Controlo da Malária (PNCM) e eram distribuídas nos distritos para mulheres grávidas e crianças dos zero aos cinco anos."
Comentário irónico: aqui está um problema importante para a blogosfera. Importante por não ser importante e por não possuir dignidade epistemológica, dirão alguns a nível planetário. O que provoca um problema? Um problema provoca perguntas. Por exemplo: terão sido os mosquitos a roubar as redes? Gente da Saúde? Estranhos que se transformaram em seres voláteis e mágicos e entraram no armazém sem necessidade de arrombarem a porta? Quantos não irão morrer agora de malária com esse roubo? Agora outro género de perguntas, colocadas por aqueles que consideram os jornalistas (enfronhados que estão no senso comum - defendem) como seres incapazes de se alçarem às perguntas inteligentes: como poderemos de forma inteligente discutir o "roubo" de redes mosqueteiras? Não deveremos ver o presumido roubo das redes mosqueteiras como uma forma sensata de distribuir democraticamente a riqueza em meios onde isso é normal? Por que ver nisso a alma obscura da corrupção e do roubo? Que importância tem esse inexistente roubo mesquinho face a problemas bem mais magnos no país? De que maneira poderemos sabiamente discutir não tanto as redes, depois as redes mosquiteiras, depois os mosquitos, depois a malária, depois quem morre anonimamente de malária, depois o jornalismo descritivo, mas, antes, os problemas epistemológicos, em última análise os problemas realmente macro-económicos, tudo pensado com muita razão e sem emoção e por aí fora? Etc. Os grandes especialistas de perguntas - os óciólologos - costumam responder a problemas comezinhos como o apresentado com a a fórmula certeira e definitiva de mais uma pergunta. Enfastiados dirão: pobres artesãos do mal-visto estes, os que dão respostas a perguntas e, especialmente, às perguntas não inteligentes.

27 janeiro 2008

Democracia ou Capitalocracia

O Mussa Raja prometeu, no seu blogue, abordar o tema com o título em epígrafe.

Quer ir ao céu? Vá a Quilálea nas Quirimbas

Neste Moçambique profundo (como diz o nosso anúncio), nesta terra amada como se diz patrioticamente, existe um sítio privado, uma ilha exclusiva vejam só, um belo sítio de veraneio e descanso chamado Quilálea, situado no coração do Parque Nacional das Quirimbas. Lá, você pode até chegar ao céu, basta ter dinheiro e esquecer-se de quem não o tem. Cinco noites em Quilálea e três em Lugenda custam £3,500 por pessoa, incluindo voos internacionais e transferências (obrigado ao Ricardo pelo envio do portal).
Entretanto, pode ler ou recordar um pouco as delícias dos paraísos turísticos aqui.

Se Obama presidente, Teresa embaixadora em Moçambique?

Se Barack Obama ganha as eleições americanas, a futura embaixadora americana em Moçambique poderá ser Maria Teresa Thierstein Simões-Ferreira, nascida em Maputo em 1938 e esposa do bilionário senador John Kerry, apoiante de Obama.
Que tal esta "ganda" hipótese sugerida pelo Ricardo, meu correspondente em Paris?

Força, Obama!

A vitória de Barack Obama no Estado de Carolina do Sul mostra que, sejam quais forem as considerações que quisermos fazer sobre a história americana, algo de novo nela acontece: primeiro, temos uma candidata, uma mulher na corrida à Casa Branca, Hilary Clinton; segundo, temos um filho do Quénia e dos Estados Unidos da América, Barack Obama, a fazer o que nunca antes nenhum afro-americano tinha conseguido fazer nos Estados Unidos, vencer primárias. E já lá vão duas. Corrijam-me caso eu esteja enganado.
Força, Obama, por uma Casa Branca diferente!
Nota: leia aqui este portal que o FM gentilmente referiu em comentário à postagem anterior. E veja aqui, em vídeo, quando Obama visitou o Estado de Carolina do Sul.

Carolina do Sul: segunda vitória de Obama


O pré-candidato democrata norte-americano Barack Obama ganhou ontem as primárias do Estado de Carolina do Sul - sua segunda vitória na corrida para a Casa Branca - com larga vantagem sobre Hilary Clinton. E tinha dito o seguinte: "Nestas eleições não se trata de escolher segundo a região de cada um, a religião ou o gênero. Não se trata de ricos contra pobres, jovens contra velhos, nem brancos contra negros. Trata-se (de uma batalha) do passado contra o futuro", disse publicamente. "Estive vários dias viajando pelo Estado, e eu não vi uma Carolina do Sul branca e outra negra. Vi uma só Carolina do Sul", afirmou.
E na minha caixa de correio electrónica havia hoje o seguinte email:
De: Barack Obama
Data: 01/27/08 05:38:57
Para:
Carlos Serra
Assunto: A big win
Carlos --
We've just won a big victory in South Carolina.
After four great contests in every corner of this country, and another record turnout today, we have the most votes, the most delegates, and the most diverse coalition of Americans we've seen in a long, long time.
You'll have a chance to make your voice heard next Tuesday, February 5th -- and I am counting on you.
I'll be heading down shortly to thank our supporters in South Carolina.
If you're reading this tonight, I hope you'll tune in at home so I can thank you, too.
Barack
Minha resposta:
Date: Sun, 27 Jan 2008 13:55:31 +0200
Subject: Congratulations, Senator!
Dear Obama
Congratulations, as African and living in Mozambique I´m very proud of you. We need a new and different White House.
Warm regards.
Carlos Serra
Nota: se quer ler em português, use este tradutor aqui.

Hino "Moçambique sai do chão"

Reparei que em vários blogues apareceu o poema de Mia Couto do hino Moçambique sai do chão (hino do movimento Amigos da Floresta de Moçambique), como se autónomo, como se exterior ao hino e ao conjunto de músicos a ele ligados (música dos Gorowane, de Xtaca Zero, do GproFam e a participação da cantora Ísis; vídeo é de Pipas Forjaz). Recordo que o hino surgiu primeiro no youtube e depois, a nível de blogues, aqui. Confira aqui.

26 janeiro 2008

Informática na pré-história


Cartoon com a devida vénia reproduzido daqui.

Cédric e Kinshasa


O jovem jornalista (mas, também, em meu entender, um excelente sociólogo) congolês Cédrik Kalonji, vencedor do prémio melhor blogue em francês do BOBS2007, é autor de um dos melhores blogues que conheço, um blogue de uma espantosa capacidade para captar o social congolês em geral e o de Kinshasa em particular. Agora também com uma versão inglesa, Cédric tem uma postagem na qual fala de Kinshasa (cerca de oito milhões de habitantes) como a maior lata de lixo do mundo. E escreveu o seguinte: "É facilmente que o Estado congolês oferece 4x4 aos seus deputados mas é aparentemente bem mais complicado que encontre soluções para a salubridade das cidades do Congo".
Nota: o blogue de Cédric, o angolano desabafos angolanos e este diário foram os três blogues africanos apurados na pré-selecção do BOBS2007.

Cólera: fecalistas e desfecalistas

Todos os anos, chegadas a canícula e as chuvas, vários problemas surgem. A cólera é um desses problemas. E quase todos os anos, também, surge a indignação perante os fecalistas a céu aberto - há uns anos um médico de Maputo chamou-lhe, na Rádio Moçambique, a "doença do cocó" - , aqueles a quem é imputada uma das responsabilidades pela surgimento da cólera em meio urbano e péri-urbano. Foi agora a vez do médico-chefe provincial de Cabo Delgado, ante o surto de cólera que afecta a cidade de Pemba. O médico afirmou que os mais assíduos fecalistas estão localizados junto à orla marítima (na cidade da Beira, toda a zona marítimas limítrofe do antigo Grande Hotel é um sanitário natural). O ano passado, também em Janeiro, o então governador de Nampula, Felismino Tocoli, afirmou: "Já chega de educação, porque o que compreendemos é que as pessoas sabem do perigo que o fecalismo, a céu aberto, constitui para a saúde pública e não só. Pelo esforço feito pelas entidades competentes há vários anos, dá para perceber que só com medidas administrativas é que podemos eliminar este mal.”
O problema de todos nós, o dos desfecalistas, consiste, regra geral, em atribuir à perigosa família dos fecalistas (perigosa, afinal, como as dos vendedores informais, dos ladrões de material eléctrico dos postes de iluminação pública e de carris das vias férreas) uma substância inata: a da porcaria. Por que razão defecam as pessoas ao ar livre? Porque são porcas, respondemos, directa ou indirectamente. Bem mais difícil é encontrar a razão do fecalismo a céu aberto nas condições sociais que fazem com que uns tenham sanitários e uma educação precoce sobre hábitos de higiene e saúde, e outros não.

Maputo: de novo polícias e cães-polícias contra os guerrilheiros do informal


Depois de um interregno, de novo a polícia e os cães-polícias estão na rua para expulsar os vendedores ambulantes dos passeios e das esquinas da cidade de Maputo, numa luta de trincheiras sem tréguas de ambos os lados.
Com efeito, uma vez mais o exército convencional da polícia faz frente aos guerrilheiros do informal na cidade de Maputo, após a ofensiva sem glória de Outubro/Novembro do ano passado. Quando aquele avança e "dispara", julga ter destruído o campo inimigo. Mas este usa a guerrilha e move-se rapidamente e ocupa novas áreas. E se as forças armadas deixam o campo anterior, nos interstícios surgem de imediato, com golpes audazes e inesperados, os guerrilheiros do informal. E por quê? Resposta dada há tempos por Mateus Cossa: "O Conselho Municipal diz para nós irmos aos mercados mas é aqui onde nós conseguimos vender qualquer coisa que garante a nossa sobrevivência e das nossas famílias".
O mundo de todos os Mateus Cossas é o das tácticas de sobrevivência: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um “próprio”, eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos biscates, do vende e revende, das regras, enfim, de uma outra concepção de vida urbana. Como diria Michel de Certeau, o que aí se ganha não se guarda.
Nota: este diário tem muitas entradas sobre o tema. Pode buscá-las escrevendo "guerrilheiros", "informal" ou "quinquilharia" no "pesquisar no blogue" situad0 no canto superior esquerdo deste portal
Adenda: Em comentário, um leitor escreveu o seguinte: "Eneas Comiche sabe bem que o problema da economia informal não se resolve pela via administrativa. Sabe que insistir nessa opção é aceitar manchar as mãos de sangue - porque vai gerar violência gratuita: luta-se pela sobrevivência (i) vendendo no informal, ou (ii) em alternativa e na falta de emprego, abraçando diferentes formas de criminalidade. Eneas Comiche sabe que a raiz do problema, é económica e não administrativa. Os nossos informais sabem que o sucesso nas vendas passa, cada vez mais, por levar o produto ao cliente. Por isso lutarão contra o acantonamento, que representa a morte do negócio. Todos desejamos que dia após dia reduza o número de informais, MAS, que tal resulte da sua absorção pela economia formal e não de medidas meramente cosméticas." (veja em comentários no interior desta postagem).

Para que servem tribo e raça? (3) (prossegue)

As minhas fontes de informação dizem-me que a vida no Bairro do Equilíbrio mudou rápida e radicamente. A turbulência política sucedeu ao dia-a-dia das pequenas coisas chatamente iguais com os seus pequenos conflitos de algibeira.
Mas vamos por partes.
O bairro tem quatro comunidades:
1) Os Originários, chegados de uma montanha algures na imaginação do tradicionalismo oral e cujo epónimo dizem chamar-se Venço Depressa. São pastores, que também têm uma tradição de trabalho sazonal em minas de platina num país limítrofe chamado Aqui Há Riqueza. Vermelha é a sua cor.
2) Os Segundos-Chegados, vindos um pouco de cada lado de um vago centro e de um vago norte do país, gente de vários ofícios, oscilando entre a agricultura de quintal e o remendismo oficinal, com oficinas de faz-de-tudo-um-pouco. Vermelha também é a a sua cor.
3) Os Vive-nas-Fronteiras, gente dos negócios, do vende não importa o quê, com as suas lojas que também são pequenas casas de câmbio e de prestamismo nocturno e um espírito de grupo fechado e discreto, de casta definitiva. Esta gente é castanha.
4) Os Empobrecidos da gente rica da cidade-capital-nação, gente esburacada que decidiu viver no Bairro do Equilíbrio e aqui se dedica aos misteres da construção, do imobiliário de circunstância e dos pequenos restaurantes. Esta gente é azul, mas também há gente vermelha-azul, gente mestiça, produto de cruzamentos efectuados em noites baixo-ventrais - cuja densidade não importa à história - entre homens dos Empobrecidos e mulheres dos dois primeiros grupos.
Nota: a qualquer momento posso modificar algo aqui. Se isso suceder, assinalarei com uma cor distinta no texto a modificação ou o acréscimo.

Vasos comunicantes e ouvido que não tem quintal

Recomendo vivamente a leitura de uma carta escrita ao "Notícias" em sua edição de hoje, com o título "Assim vai a vida em Tete". Repare só neste parágrafo: "Também acompanhamos das mesmas fontes ou dos comícios que os desonestos devem ser denunciados. Denunciar sim, mas cuidado com o sistema de vasos comunicantes, pois um cidadão que denunciar o mal que vê numa determinada escola verá que o seu filho ficar anos para passar de classe e, se conseguir passar, perde a vaga para a classe seguinte. Se for funcionário numa empresa não-governamental será considerado esperto demais e sem demora será despedido. Se for numa empresa estatal será considerado indisciplinado, agitador ou ainda ambicioso e nunca será promovido, por que seja na esquadra, será caçado no dia em que tiver um caso e dirão “agora sim, o apanhámos”. Se for contra um posto de Saúde és esperado quando ficares doente e aí pagarás o dobro, etc, etc."

Cheias: a luta dos dois universos

Envolvidos no resgaste das pessoas em zonas de risco por causas das cheias estão muito aborrecidos com o facto de os resgastados tenderem a voltar para origem. O director-geral do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, Paulo Zucula, afirmou que "pessoas há que foram evacuadas por duas ou três vezes, razão pela qual foram chamados hoje à UNAPROC marinheiros e régulos para reflectirem seriamente sobre a matéria, definindo imediatamente novo plano de trabalho (...) Estamos a constatar que há certa ineficácia por causa da relutância. Inclusivamente, estamos a evacuar pessoas que vão ao mercado vender galinhas e cabritos e que à noite voltam para as zonas de risco (...)."
Aqui está um problema. E o problema consiste em ver as pessoas integradas num universo técnico-socorrista imediato: por isso elas devem sair dos locais afectados, não faz sentido ficarem lá, ficar lá é irracional. Ou então diz-se que o problema está na cabeça dura dos régulos, régulos que descomandam os camponeses.
Mas o problema tem um outro problema, o problema do problema. O problema do problema é que as pessoas resgastadas vivem num outro universo, numa outra concepção, a concepção de que só se pode viver com as cheias, com a água desalmada que afecta as terras, mas onde há limo, peixe, onde estão os espíritos dos antepassados, os corpos dos entes falecidos, frequentemente onde estão enterradas as placentas dos nascidos.
Que tal se o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades tivesse um anexo chamado "Núcleo de Estudo dos Comportamentos Racionais Diferentes dos Nossos"?

25 janeiro 2008

Para que servem tribo e raça? (2) (prossegue)

Suponhamos uma coisa improvável: o da existência no país de um bairro, chamado Bairro do Equilíbrio, onde vivem pessoas de várias etnias e raças. Suponhamos que todas elas vivem sabendo (claro) que são diferentes, que as suas origens étnicas são diferentes, que as suas raças também. Suponhamos que a consciência dessas diferenças não é suficiente para que surjam movimentos proclamando que uma dada etnia é superior às outras etnias e/ou que uma dada raça é superior às outras raças. E suponhamos que a inexistência de movimentos de preeminência imaginada ou substantivada se deve ao facto de as diferenças sociais não serem suficientemente amplas e visíveis para que a diferença seja erigida em demarcador de luta excludente.
E suponhamos que nesse bairro chegou a hora de se eleger o presidente do bairro. Existe um edifício que se chama Presidência do Bairro. Lá há tudo o que uma presidência de bairro deve ter: salários, viaturas, um fundo de despesas várias e coisas assim meritórias e apetecidas. Suponhamos, finalmente, que foi um deus perverso quem criou isso tudo, de um dia para o outro.
Nota: a qualquer momento posso modificar algo aqui. Se isso suceder, assinalarei com uma cor distinta no texto a modificação ou o acréscimo.

Biocombustíveis podem ameaçar meio-ambiente

Os biocombustíveis podem ameaçar o meio-ambiente. Confira aqui. O meu obrigado à Margarida Martins pelo envio da referência.

Empresas mineiras sul-africanas suspendem operações

Empresas auríferas e a maior empresa mundial produtora de platina suspenderam a sua actividade na África do Sul devido à crise energética do país. Confira aqui.