19 abril 2006

Racismo e etnicidade

Os seres humanos não nascem egoístas , racistas ou étnicos. Eles tornam-se nisso devido às lógicas combinadas de três fenómenos: interacção social, disputa de recursos de poder e educação. É aqui que se tecem os sistemas de referência e os meandros categoriais, é aqui que crescem, se consolidam e se tornam naturais os jogos de alteridade, que se desenvolvem o racismo e a etnicidade, é aqui que o bom senso deixa de ser, como queria Descartes, "a coisa mais bem partilhada coisa do mundo" .
A multiplicidade fenoménica da vida obriga os seres humanos a produzir quadros e categorias simplificadoras do social.
A vida humana é, em grande medida, uma constante disciplina do pormenor, da incerteza e da dúvida.
Essa disciplina opera, normalmente, através de três movimentos: o movimento do julgamento retrospectivo (do género "se assim foi no passado, sempre assim será"), o movimento da indução simplificadora (trata-se do "efeito do corvo negro": se encontramos um corvo negro, somos tentados a supor que todos os corvos são negros) e o movimento infra-intelectual da precedência afectiva (primeiro os nossos, depois os outros).
É com esses três movimentos que naturalizamos o que é socialmente produzido. E fazemo-lo apenas com alguns indícios, com alguns dados . Com meia dúzia de fragmentos enfrentamos o futuro, com o que temos atrás vamos ao encontro do que está à frente. Os hábitos são a chave que abre e domestica o imprevisto. Na verdade, face às coisas novas, somos tentados a reconduzi-las, rapidamente, às coisas velhas.
Toda a nossa vida é a conversão do desconhecido ao conhecido.
Quando entramos em contacto com o Outro, apresentamo-nos como o coágulo "instintivo" de milhares de percepções social e culturalmente trabalhadas e armazenadas .
O que julgamos ser natural, é, afinal, socialmente trabalhado e construído, como se em nós houvesse uma espécie de "genética social" .
Racismo e etnicidade têm, aí, na sua elementaridade e na sua funcionalidade, um campo de acção exemplar.
Na verdade, eles apelam, ao mesmo tempo, para uma essencialidade original e para uma especificação de diferença irredutível supostas preceder a interacção social.
No racismo actua-se por marcadores físicos elementares - é a racialização do social; na etnicidade, por marcadores simbólicos (língua, "costumes", anterioridade de chegada a um território, heróis epónimos) da comunidade imaginada de origem - é a etnicização da identidade. Num caso temos a visibilidade somática, no outro a visibilidade da história.
Em ambos faz-se a apologia de um certo tipo de superioridade, seja de origem, seja de características intelectuais e morais, seja de ambos ao mesmo tempo.
É racista quem defende a superioridade genética de um grupo; é étnico quem defende a superioridade da sua comunidade imaginada de origem. Ambos procuram monopolizar os recursos de poder em função de marcadores, pigmentação num caso, comunidade imaginada de origem no outro.
Racismo e etnicidade são exercícios sociais de inclusão/exclusão que, interiorizados e assumidos, funcionam como os semáforos (o verde para os nossos, o vermelho para os outros).
Ambos erigem sistemas acabados de verdades do dia-a-dia em referenciais de conduta e atribuição instintiva de significado social, cuja característica é de comportarem como tropismos sociais, federando atitudes, unindo comportamentos e estabelecendo fronteiras intolerantes entre os seres humanos.
À força de se sentir o diverso e de o produzir como símbolo e acto, atinge-se a intolerância mesmo quando se faz a apologia multicultural . Tecemos e retecemos, então, com o ardor de Penélope, o "espírito da casa fechada" .
Nos casos mais extremos e trágicos, aqueles da alteridade absoluta erigida em armas e extermínio, racismo e etnicidade dão origem a um corpo doutrinário para o qual se busca uma fundamentação científica.
Há quem defenda a origem natural desses fenómenos.
Um autor como Van den Berghe, por exemplo, sustentou, na esteira dos trabalhos de sociobiologia de Edward Wilson, que as relações raciais e étnicas são da mesma natureza que as relações parentais, uma vez que, tais como estas, são fundadas numa ascendência comum, real ou suposta. Daí a preferência espontânea dada aos "nossos", no sentido mais genético do termo. O ser humano deve ser analisado enquanto organismo que se adapta ao seu meio .
Assim, é suposto existir um automatismo identitário que decorre dos nossos genes ou de uma comunidade de origem e não das relações sociais.
Racismo e etnicidade são formas elementares de interacção social e não exercícios fenotípicos de origem, não sendo mais do que subprodutos de um mesmo fenómeno político: a luta intergrupal pelo acesso privilegiado a recursos de poder raros . Por outras palavras, racismo e etnicidade nascem com eles, a partir daí e não antes .
Poder não é uma "coisa", mas a capacidade de um grupo conseguir que nas suas relações com outro grupo ou com outros grupos os termos de troca lhe sejam favoráveis .
Para chegar a essa situação de "direitos adquiridos" , os actores munem-se de recursos estratégicos, como sejam o controlo dos aparelhos do Estado, normas, valores, estatuto social, riqueza material, honra, formação escolar, anterioridade de chegada, interpretação da história, etc.
A interacção social é, nesse sentido, portanto, assimétrica. Uma sociedade constitui-se diferenciando-se e excluindo. Como escreveu alguém, formar um grupo "é criar estrangeiros. Uma estrutura bipolar, essencial a toda a sociedade, coloca um "de fora" para que exista um "entre nós"; fronteiras, para que se desenhe um país interior; "outros", para que um "nós" tome corpo" .
É nesse contexto que nasce e se fossiliza o que Freud chamou "narcisismo das pequenas diferenças" , uma "pulsão instintiva" que acaba por aparecer, afinal, como que natural e estrangeira às relações sociais e à sua conflitualidade.
Mas esses "narcisismos" têm origem quer nas diferenças de classe, quer nas diferenças regionais. A este último nível tem curso o conflito centro/periferia.
Com efeito, o conjunto de actores gestores de "direitos adquiridos" vive numa configuração social, digamos num país, na qual um centro produtor (que participa da natureza do sagrado) das regras, das crenças e dos valores (a capital do País) está confrontado com uma periferia (o resto do País) .
Os que estão na periferia relacionam-se com os que estão no centro através de um sentimento ambivalente de ciúme, repulsa e imitação.
Entre os mais sensíveis ou os mais inteligentes da periferia, pode surgir a sensação exacerbada de se encontrarem marginalizados da zona vital do centro .
As relações assimétricas dão origem à produção de imagens constantes e unificadas sobre o Outro , a essências supostas imutáveis e "automáticas" chamadas estereótipos.
Esses estereótipos são ao mesmo tempo exercícios de identificação que confortam a imagem de honra que os grupos e as pessoas têm de si e armas de combate na luta pelo acesso a recursos de poder raros.
O fundamental a reter é que não são os sentimentos em si ou supostas pulsões originais que estão na origem dos conflitos sociais de natureza racial e étnica, mas os fenómenos de posse e privação que irrigam a e são irrigados pela interacção social .
Portanto, as categorias que produzimos para identificar os outros, do género "chingondos", não são categorias naturais, a priori, que existam pré-fabricadas.
Na interacção social e na luta pelos recursos de poder, as categorias por nós empregues para catalogar o Outro são robustecidas e contaminadas por juízos de valor, juízos que frequentemente produzem a estigmatização/desqualificação social (do género "Os Machope são aqueles que limpam a porcaria na cidade de Maputo").
A etnicidade e o racismo são processos de categorização e de estigmatização/desqualificação sociais que nasceram ou nascem justamente no duplo, tenso e interligado contexto indicado: na interacção social e na luta pelo controlo de recursos de poder.
Esses dois processos têm curso no contexto da relação "estabelecidos"/intrusos". Os "estabelecidos" (proprietários, "donos da terra", partido "no poder", detentores de cargos governamentais, empresários, etc.) tudo farão para continuar a ser detentores de recursos; os "intrusos" esforçar-se-ão por questionar os "direitos adquiridos" e/ou desalojar os primeiros. Atacar os "direitos adquiridos" é considerado pelos primeiros como atacar a ordem estabelecida. Toda a ordem jurídica e judiciária está estruturada para assegurar esses direitos e punir as infracções. Os gestores dessa ordem tudo farão para apresentar os seus interesses como interesses "de todos", como interesses "universais" desde sempre existentes, como interesses "naturais". Ainda que, estabelecidos os hábitos, tome curso a "cegueira das origens" (um bocado a "câmara escura" de Marx e Engels ), os actores em competição estão sempre aptos a estar conscientes do que fazem e do por que fazem, uns por estarem "estabelecidos", outros por quererem "estabelecer-se".
É aí que toma curso todo o mundo conflitual da estruturação simbólica e categorial do Outro.
Termos como "chingondo", "monhé", etc., ou expressões como "os landins são inteligentes", "os Manhungwe não prestam", "os monhés só sabem fazer comércio" ou, ainda, "os gajos do Sul estão-nos a pilhar" ou "os Maquilimane só sabem roubar" contêm ao mesmo tempo uma prática, uma história e uma memória em constante reactualização (ainda que os seus utilizadores possam não estar conscientes disso e se limitem a veicular, a fazer e a recordar o que se tornou "hábito", costume do grupo, etc.): a prática da interacção social e da disputa de recursos de poder, a história de como se fez ou se faz a intersecção e a disputa pelos recursos de poder e a memória que se reactiva ou se reactualiza consoante a intensidade dos contactos.
Julgamos muitas vezes que é a cor da pele ou o apelido que nos leva a incluir alguém num grupo diferente. Mas seria mais pertinente começar por estudar a história que está por trás disso .
A interacção social faz, portanto, comunicar, mas também colidir. Nela coabitam lógicas de inclusão e de exclusão.
Quanto mais forte for o potencial de comunitarismo e, portanto, de recusa do Outro, mais forte é, também, o apego à tradição e ao conservadorismo. Assim, as percepções sobre racismo e etnicidade têm, por hipótese, afinidade com outros tipos de percepção, que vamos agrupar no que chamaremos "stock de tradições", a saber: liderança tradicional, causalidade e fatalidade extra-humana e pobreza entendida como ausência de afectividade relacional.
As lógicas comunitárias recrudescem na proporção directa da exclusão social em curso no país e das assimetrias sociais existentes.
Quando está em causa a luta política imediata e o acesso privilegiado a recursos de poder, os exercícios identitários de categorização social tornam-se rapidamente estratégicos e agudos, ganham um corpo doutrinal acabado e visam deliberadamente o que Foucault chamou soluções "ganhantes" .
A alteridade do Outro surge como um alvo a atingir e a recusar.
A busca de bodes expiatórios raciais, por exemplo, torna-se inevitável : um grupo "racial", geralmente minoritário, com grande visibilidade somática, é considerado o responsável dos males sociais.
Podemos falar em "etnicidade estratégica" e em "racismo estratégico". Assim contextualizados, estes fenómenos nada têm a ver com o velho homo clausus de um certo passado primordial e, no caso da etnicidade, com o "essencialismo etnológico" .

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