19 abril 2006

Poder simbólico

O nosso país é fértil em trabalhos linguísticos de vária natureza.
Com efeito, uma longa e meritória história atravessa, já, a gesta, a arqueologia das nossas muitas línguas, as regras do seu funcionamento, a sua gramática, a sua semântica, a pluralidade de usos locais, os processos de mestiçagem, etc.
Existem muitos trabalhos sobre como se pode gramaticalizar este ou aquela língua. Estamos, na verdade, perante um enorme esforço técnico.
Existe, por outro lado, todo um grande esforço para lembrar às populações (uma vez mais aqui estão elas) o dever histórico que têm de conservar essas línguas. Aqui existe uma espécie de medo geral (a perda de autonomia) e um medo específico, o medo do português e, por extensão, o medo das cidades diluidoras e generalistas.
Porém, não há, hoje ainda, um estudo sobre o poder simbólico da língua enquanto instrumento político, de dominação, de legitimação do poder das classes dominantes, urbanas e rurais.
Fazendo uso do que escreveu Pierre Bourdieu, poderíamos dizer que trabalhamos muito na esteira de Saussure e de Chomsky, com a “leitura” técnica das línguas.
Mas seria fascinante que um dia os nossos linguistas começassem a estudar de que maneira ou de que maneiras as línguas são usadas enquanto mecanismo de dominação, urbana e rural, de que maneira ou de que maneiras elas se inserem na e homologam a produção de relações sociais hierarquizadas, de que maneira ou de que maneiras as formas de dizer e de escrever reflectem o poder extenso da dominação política, de que maneira ou de que maneiras reflectem estruturas de hábitos adquiridos e enraizados pelo poder político, de que maneira ou de que maneiras elas se inscrevem, enfim, nos campos simbólicos de luta e de dominação.
Acresce que o poder político ama pouco a fragmentação das nossas línguas, a sua mestiçagem, a sua, digamos, urbanização.
Por quê? Porque gente falante de várias línguas, gente de língua mestiça, vê melhor o mundo e descobre melhor os cordelinhos das relações sociais, os mecanismos da dominação política.
A este propósito, recordo-me de uma anedota que me contaram anos atrás. Um dirigente foi a uma província e tentou convencer as “populações” locais a preservarem as línguas nacionais. Uma pessoa idosa levantou-se e disse ao dirigente mais ao menos o seguinte: “Pois é, meu filho, nós devemos falar as nossas línguas, mas tu falas inglês e viajas, nós não podemos fazer isso”.

2 comentários:

Mangue disse...

Hoyo-hoyo!

Gostaria de ter a liberdade de indicar o blog para alguns colegas do grupo de pesquisa em que participo, sociólogos entre eles, e que se aventuram num projecto conjunto Brasil-Moçambique.

Quanto à chamada, relacionada às questões que envolvem a tradição oral e ao poder simbólico que podem levar à "reprodução da violência simbólica" (Bourdieu), achei interessantes o livro "Cultura acústica e letramento em Moçambique" de José Miguel Lopes, 2004, resultado do seu doutoramento. Um outro trabalho particularmente interessante é do Aurélio Ginja, em que faz uma abordagem diferente em relação ao ensino bilíngüe em Moçambique e em que tenta enxergar as tradições culturais (essencialmente oral, em Moçambique) para além da língua. Por ser um trabalho em andamento, acredito que o contacto com as questões por si adiantadas ou contacto pessoal ser-lhe-ia enriquecedor.

Abraços,
Manuel Mangue

Carlos Serra disse...

Muito obrigado pelo comentário! Em frente, dissemine o blog! E de novo muito obrigado pelas sugestões de leitura que fez. Abraço.