24 abril 2006

Onde termina o tradicional e começa o não tradicional?

Um dia, no fim de um dos meus cursos abertos, coisa que durante alguns anos fiz, uma senhora epistemologicamente aflita chegou-se ao pé de mim e perguntou-me o seguinte: “Oiça, professor, onde acaba o tradicional e começa o que não é tradicional?”
Terrível pergunta.
A imagem topológica da senhora pode ser mostrada assim, com este exemplo de fronteiras: chegamos à fronteira com a África do Sul em Ressano Garcia. Até à fronteira existe Moçambique, depois da fronteira aparece a África do Sul.
Como um dia escreveu Henri Bergson, todas as nossas maneiras de falar, de pensar, de perceber implicam a existência da imobilidade e da imutabilidade como estados de direito aos quais o movimento e a mudança vêem juntar-se como acidentes, vêem juntar-se a coisas que, por elas mesmas, não se movem e em elas mesmo é suposto não mudarem.
A chave cognitiva disso está, afinal, em Aristóteles: o julgamento opera pela atribuição de um predicado ao sujeito. O sujeito é invariável. A variabilidade reside na sucessão de estados que do sujeito afirmamos e que se sucedem numa dada substância.
Nos anos quarenta do século XX, os colonizados começaram a pedir vinho aos administradores coloniais para fazerem as suas cerimónias mágicas. Os espíritos tinham começado a modernizar-se: do pombe passavam ao vinho. Estávamos ainda na tradição? Não, a tradição modernizava-se, digamos assim, transformava-se, mudava.
Num dumba-nengue de Maputo, por exemplo no Xiquelene, encontramos teias de redes familiares e étnicas bem estruturadas, costumes aparentemente antigos, etc. Diremos: aqui está a tradição, encontrámo-la, ela é ainda sólida, agarremo-la. Mas os carris sobre os quais roda essa dita tradição pertencem ao salve-se quem puder, aos interstícios do que vários chamam capitalismo periférico. E as regras aqui são bem complexas. O que há no Xiquelene tem a estrutura multiforme de uma liga.
Urge penetrar melhor no coração das coisas, explorar mais dialecticamente a sua composição labiríntica, furtarmo-nos à ortodoxia aristotélica-cartesiana, ao pensamento binário.
Naveguemos no misto. A sociologia deve ser irremediavelmente alotrópica.

P.S. Acho que voltarei a este texto.

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