"Todas as elites estabelecem as suas prioridades para a sua própria sobrevivência como grupos sociais" - assim sentenciou António Eduardo a propósito da coqueluche dos biocombustíveis no país. Mas o que sabemos nós, realmente, em Moçambique, sobre o risco que representa produzir biocombustíveis em lugar de alimentos? Este o problema de Eduardo, que apela aos cientistas para tomarem partido, para dizerem algo. Há muitas vagas de ideias novas que as elites (para usar o termo de Eduardo) estão a produzir. O que ainda não produziram foi uma concepção de riscos a médio e longo prazo para este país em termos de esgotamento de não poucas coisas em termos ambientais. Tudo está bem, tudo foi previsto, dizem todos os dias os videntes. E se há quem diga o contrário, evidentemente que só pode estar ao serviço de Satanás, como pretende o Sr. Mini Mathendja.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
10 comentários:
Dr. Serra,
Eu também tenho as minhas dúvidas relativamente a esta questão dos biocombustíveis mas estão num outro prisma (especificações/padrões de qualidade que em Mozie ainda não estão definidos nem claros ao contrário de outros quadrantes) que não o levantado aqui.
Sobre o tema em análise aqui pergunto qual seria o enfoque correcto para este debate sobre a produção de biocombustíveis? Devemos abandonar pura e simplesmente a ideia ou temos que garantir que a população não produza SÓ jetrofa e produza milho para consumo também? É ou não aplicável aos biocombustíveis a experiência em vigor com o Tabaco e o Algodão? Porque a polémica com os biocombustíveis (versus produção de alimentos) se já se fomenta (há séculos) outras culturas de rendimento?
Martin de Sousa
Obrigado pela sua contribuição. Tanto quanto julgo saber, os biocombustíveis têm provocado sérios problemas por exemplo no Brasil, gerando hoje muita controvérsia. Por outro lado, existem estudos coloniais sofre os efeitos erosivos do algodão em Moçambique. O problema principal, Martin, é a ausência de um diálogo prévio, da capacidade governativa para discutir previa e profundamente certos temas como o dos biocombustíveis, o dos recursos não renováveis do país, etc. É como se estivessemos numa espécie de vertigem, a todo o momento. Há neste diário comentários de leitores sobre os recursos não renováveis...
Recentemente li um artigo que falava sobre a questão do aumento dos preços do trigo e cevada nos mercados internacionais, este artigo referia-se concretamente a situação na Alemanha. O que sucedeu foi que uma parte consideravel de agricultores passaram a produzir estas plantas que tem a capacidade de produzir o biocombustiveis porque eram melhor remuneradas com a sua venda em detrimento do trigo e cevada, como o resultado a escassez do trigo e da cevada provocou o aumento dos preços do pão e da cerveja.
A questão aqui não deve cingir-se na produção ou não produção desses biocombustiveis mas sim na capacidade de fazer com que a produção destas culturas não abra espaço para marginalização da produção das culturas alimentares.
Ninozaza, esta era (à altura do meu primeiro post) a minha visão sobre esta questão dos biocombustíveis: "A questão aqui não deve cingir-se na produção ou não produção desses biocombustiveis mas sim na capacidade de fazer com que a produção destas culturas não abra espaço para marginalização da produção das culturas alimentares." E aqui eu buscava o exemplo do que se tem feito com o fomento do tabaco e do algodão.
Quanto a falta de diálogo Dr. Serra o problema não está no Governo. Está em nós que não temos sabido abordar o Governo (ou nem o abordamos) para forçar visões. Salvo raríssimas excepções (estas abordagens neste blog, as críticas do Dr. Elísio Macamo, Mia Couto) não temos sabido exercer uma cidadania consciente mostrando alternativas possíveis ao Governo.
Auto-amordaçámo-nos e olhamos para os outputs governativos como dogmas inatingíveis. Quando abandonarmos esta atitude passiva e mostrar que pensar diferente não estar contra os objectivos que se pretende ai vamos forçar o GOVERNO e os GOVERNATES a pensarem e estudarem mais os dossiers que nos apresentam.
Voltando à vaca fria, desafio (no bom sentido) o Dr. Serra a compartilhar connosco o conhecimento dos problemas brasileiros neste sector para que, mesmo que seja por esta via, comecemos a dissecar seriamente o problema dos biocombustíveis e as suas consequências e traçarmos estratégias de abordagem ao poder do dia.
Contem comigo.
Martin de Sousa
Ao discutir estyes assuntos é preciso não perder de vista que a Máfia do petróleo gostaria que continuasse tudo na mesma. Gostaria de que não aparecessem produtos alternativos àquele caríssimo produto.
Ademais, ao discutir este assunto, creio ser essencial percebermos que a agricultura de subsistência não representa nenhum futuro para o nosso povo. É necessário, em minha opinião, colocar os camponeses moçambicanos no mercado, possibilitar que eles gerem renda monetária, nem que seja com biocombustíveis.
Subscrevo a ideia dos outros comentadores de que é possivel produzir, simultaneamente, jatropha e comida.
Obed L. Khan
Concordo com o Ninozaza quando diz que devemo-nos focar na dita marginalização da produção das culturas alimentares.
Digamos que é uma faca de dois gumes. As culturas de biocombustiveis podem levar a aumentos de preço de produtos base por escassez de produção com objectivos alimentares como podem levar a aumentos de preço por excessos de produção para exportação.
Tudo depende do que se produz.
Em muitos países da América Latina a preferência pelo "ouro verde" levou a exportações excessivas inflacionando o preço do milho local.
Dito isto, não concordo com o Sr. Obed quando diz que o que é necessário é possibilitar que os camponeses gerem renda monetária, nem que seja com biocombustíveis. Isto poderá trazer inúmeros problemas com a insuficiência de culturas alimentares.
Como já foi dito aqui, é tudo uma questão de equilibrio. Mas como se sabe, o caminho mais curto é sempre o mais apetecível.
Relativamente à falta de diálogo com o Governo realçada pelo Dr. Serra estou 100% de acordo com o Martin mas atiro para o caldeirão uma questão.
Já que assumimos o nosso papel passivo como sociedade, será que fazemos realmente tudo que está ao nosso alcance (para além de debatermos diáriamente os nossos pontos de vista num mundo bloguístico - o que já é um princípio) para abordar e pressionar o governo?
Uma vez que foi aqui pedido, deixo alguns links relativos aos biocombustíveis no brasil que poderão (ou não) achar úteis:
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/o-mito-dos-biocombustiveis
http://www.greenpeace.org/raw/content/brasil/documentos/energia/greenpeacebr_070208_energia_biocombustivel_problema_e_solucao_port_v1.pdf
http://www.biodieselbr.com/blog/cat/problemas/
Cumprimentos,
AC
> A UE fixou aos países membros metas ambiciosas para a substituição dos combustíveis fosseis por biocombustíveis e outras energias renovaveis.
> Em consequência, assiste-se a um "assalto" aos países com condições para a produção de cana e oleaginosas.
> Já temos entre nós as principais multinacionais dos petróleos á procura das melhores terras.
> O blog XITIZAP aborda muito bem esta questão.
> O Ministro da Energia disse que a política para os Biocombustíveis estava em estudo e, segundo parece, tudo aponta para que haja uma forte cooperação com o Brasil - inequívocamente uma autoridade nesta área. Há que aproveitar os prós e os contra da experiência brasileira.
> Contudo, ainda sem a política definida, assistimos já a algumas decisões do Conselho de Ministros, como é o caso dum investidor na área de Massinguir. Procedimento preocupante, no meu entender, pelos aspectos seguintes: (i) a área autorizada a este investidor, da ordem dos 30 mil hectares de regadio, corresponde a cerca de 50% das terras com aptidão para o regadio na área de influência da barragem; (ii) havendo tanta procura de solos com infraestruras de regadio para esta finalidade, não faria sentido o Governo colocar essas áreas a concurso?; (iii) quanto vai pagar este investidor ao Governo pela utilização de 50% da capacidade da barragem?
> E porquê tanta pressa em autorizar esta concessão, antes de definida a política para este sector estratégico? que interesses?
> Há uma série de problemas ambientais, agronómicos, de segurança alimentar e outros a investigar antes de nos apressarmos a autorizar projectos caso a caso.
> O sector familiar vai ter um peso insignificante neste processo; vamos assistir, fundamentalmente, a culturas empresariais, com milhares de hectares,fortemente mecanizadas.
> Com os meios tecnologicos actuais, o sector familiar não está capaz de aumentar áreas para culturas de rendimento sem prejuízo das culturas alimentares. > Há um enorme potencial e muito trabalho a realizar.
Florêncio
Porque é que os meios tecnológicos usados pela agricultura familiar estagnaram e não evoluiram durante séculos? Parece-me que parte da resposta está no facto de o agricultor familiar africano produzir para a subsistência. Sem contacto com o mercado, ele não encontra incentivos para aumentar continuamente a sua produção. A enxada de cabo curto, que ele vem utilizando ao longo dos últimos séculos, revela-se adequada para dar resposta às suas necessidades.
Ponha-se o camponês africano em contacto com o mercado. Convence.se-lhe de que a sua produção pode ser absorvida pelo mercado, como acontece com a Europa ou com a América do Norte. Como ele não é estúpido, há-de descobrir que a enxada de cabo curto se transformou nom empecilho. O camponês africano há-de começar a reclamar e a procurar alfaias mais produtivas. Alfaias que ele possa manter e sustentar com as vendas dos seus excedentes.
O que estou a tentar dizer é: que necessidade é que o meu tio, que vive na aldeia em que eu nasci, tem hoje de adquirir uma charrua de tracção animal? O que faria ele do excedente de mandioca que ele iria produzir? O que faria ele do excedente de laranjas, mafurra, mangas e outras frutas abundantes na minha aldeia natal? Como ele não gera rendimentos adicionais como é que ele mandaria concertar a charrua em caso de algum problema?
Parece-me que os camponeses possuem meios de combinar produção de alimentos com outras culturas de rendimento. O meio mais imediato seria dar o salta tecnológico, que já está atrasado alguns séculos. E ninguém teria que fazer grandes mobilizações para que esse saltio aparecesse. O mercado encarregar-se-ia de empurrar esses camponeses.
Obed L. Khan
Caro Obed,
Há um certo “romantismo” quando termina dizendo “ … o mercado encarregar-se-ia de empurrar esses camponeses”.
Em ECONOMIA DE MERCADO encontramo-nos nós desde a adesão ao FMI e WB em 1986. O que importa saber, é a razão porque as forças de mercado não se equilibram e continuam, a marginalizar os camponeses.
A UE e os EUA são ARAUTOS de mais e mais mercado (para os outros). Estou convicto que a maior parte de nós aceita caminhar para “Menos Estado / Melhor Estado”, desde que com realismo: o “emagrecimento” das responsabilidades do Estado tem de ser feito à medida que, efectivamente o sector Privado (o mercado) estiver capacitado para substituir o Estado com igual ou, preferivelmente, melhor eficiência. E isso não tem sido feito – com reflexos na degradação dos níveis de produção e produtividade das últimas décadas, como, estatisticamente, é fácil de verificar.
O sector agrícola é complexo – não é por acaso que a UE e os EUA têm mecanismos de protecção – de subsídios à produção, ou para não produzir - e, também, mecanismos de compra e distribuição de excedentes (da produção acima das necessidades dos seus mercados).
Nos sistemas de produção agrícola têm papel essencial: (i) o Estado; (ii) o sistema financeiro; (iii) o mercado fornecedor de mão de obra e de bens e serviços; (iv) o mercado comprador da produção, interno e internacional.
Entendo ser fundamental redefinir as responsabilidades de cada um destes agentes, para que os camponeses possam vir a produzir mais execedentes alimentares e culturas de rendimento, com qualidade e a preços competitivos.
Florêncio
Caro Florêncio, é evidente que eu não sou tão "romantico" ao ponto de acreditar que as forças cegas do mercado, de per si, tenham o potencial de colocar o agricultor moçambicano na modernidade.
Acredito no papel fundamental do ESTADO no esforço de retirar esta faixa da modorra em que foi colocada ao longo dos últimos séculos.
O meu ponto é o de que não é a produção de biocombustíveis que há-de trazer fome para África. Nós temos vindo a viver com fome permanente desde que as forças do mercado nos marginalizaram. E, parece-me, nunca ninguém se preocupou seriamente com essa fome. Pelo contrário, há um esforço sistemático no sentido de nos manter na miséria e na marginalidade económica.
Com efeito, porque só agora, quando os nosssos ESTADOS ensaiam formas de colocar os nossos agricultores a venderem algo para o mercado começam a aparecer bem intencionados com a FOME que isso vai trazer? Como se agora vivéssemos em fartura!
É daí que eu estimo que a Máfia do petróleo está hesitante. Por um lado gostaria de manter o monopólio energético exercido pelo petróleo. Para isso inventam a treta de que os biocombustíveis vão trazer fome. Por outro lado, começam a ensaiar os primeiros passos para eles também entrarem na cultura dos biocombustíveis com base no uso intensivo de equipamentos. É evidente que esta última solução vai perpetuar a nossa condição de marginalizados.
Caro Florêncio, eu tenho a intuição de que as nossas preocupações são coincidentes. Queremos que os camponeses da nossa terra vivam melhor. E para isso o ESTADO tem um papel inicial de grande peso.
Obed L. Khan
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