12 janeiro 2008

"História de Moçambique? Mas isso existe?" (2) (fim)



Hoje, ex-alunos meus do ex-Liceu pero de Anaia (actual escola Secundária Samora Machel) na Beira, vão almoçar juntos, algures, neste planeta, vindos de vários pontos. Prometi que recordaria algumas coisas desse tempo. E eis-me a fazê-lo.
Em 1975 comecei a subverter os programas de História dos antigos 5.º e 2.º anos, especialmente o do 5.º ano. Em cinco turmas comecei a leccionar História de África e de Moçambique, comecei a falar da pré-história (aqui contei muito com a ajuda do arqueólogo Octávio Roza de Oliveira), depois da história, incidi nos antigos Estados da África Ocidental (Gana, Mali, Songay), na África Austral fiz do Estado de Mwenemutapa o centro das atenções. E como pude eu fazer isso, com que bases? Explico. As Irmãs Paulinas tinham uma livraria pequena, ali junto às instalações da antiga tipografia do jornal "Diário de Moçambique" (mais tarde "Notícias da Beira" e hoje de novo com o nome original). As irmãs começaram a receber montes de livros sobre os mais variados aspectos de África, regra geral em francês, especialmente das editoras Présence Africaine e da Harmattan. Eu comprava tudo o que chegava. E lia vorazmente. Essa, a base das aulas.
Porém, semelhante revolução provocou, naturalmente, ressaibos e problemas complicados para mim, jovem jornalista do "Notícias da Beira" e professor eventual preparando-se para frequentar a Universidade Eduardo Mondlane. Nos conselhos de professores, tornei-me o alvo da boa dra. Chabert, chefe da Disciplina de História. Como era possível semelhante duplo desplante, primeiro alterar os programas oficiais, segundo afirmar que existia história de África e de Moçambique. Isso existe, essa história? Mas a vice-reitora, Celina Costa (já falecida), protegia-me de alguma forma a retaguarda. Por isso dezenas de alunos passaram meses a estudar, a consultar livros da antiga biblioteca da Câmara Municipal, trabalho do qual resultaram memórias escritas que julgo estarem ainda guardadas na Samora Machel. E íamos regularmente a Manica, estudar as pinturas rupestres de Chinhamapere.
Desse tempo, tempo de ontem, tempo de hoje, ficou-me a memória de todo um período, de toda uma nova étapa da nossa história. Por isso escrevi este texto e espero que os meus ex-estudantes possam, por este blogue, verificar que, ontem como hoje, aos 60 anos, continuo a ser o Carlos sempre jovem. E cada vez mais jovem, o que é, creio, salutar. Os meus blogues sã0 disso um exemplo. Não acham? Sois obrigados a achar...Aos leitores em geral, peço que me perdoem este confessionalismo.
(a primeira foto mostra um momento da ascensão aos Montes Chinhamapere; a segunda, uma aula livre creio que nos arredores da vila de Manica. As fotos foram-me gentilmente enviadas por um ex-estudante).

9 comentários:

AGRY disse...

O senhor provocou certamente a ira dos deuses! Mas, então não seria mais patriótico o senhor falar aos seus alunos dum tal D. Afonso Henriques?
Que interpretação filosófica da história o sr foi inventar para subverter os seus alunos?
Esta provocação foi só para lhe dizer que deve ser gratificante, decorridos todos estes anos, os seus alunos recordarem a desintoxicação cultural iniciada na Escola Secundária Samora Machel
Abraço

Carlos Serra disse...

Sim, é lindo. Talvez um dia eu escrava sobre muitas outras e maravilhosas coisas. Abraço!

João Feijó disse...

O professor teve a oportunidade de viver numa época que em Moçambique foi de revoluções profundas (e confesso que o invejo por isso), e o campo da historiografia representa apenas a ponta de grande iceberg. Vá lá. Há que escrever essas memórias. Um abraço, João

Carlos Serra disse...

Já pensei nisso, João...

João Feijó disse...

Sim, até já se justificava uma história da historiografia em Moçambique. Avante!

micas disse...

Pois é e o encontro foi um sucesso!

Vivemos quase 12 horas de muita emoção, muita alegria do reencontro, muita recordação gravada bem fundo nos nossos corações.

Porque não consigo descrever por palavras, tudo o que sentimos, as minhas desculpas.Mas há coisas que não se explicam, não se escrevem, SENTEM-SE!

E o próximo encontro está já agendado.Seremos mais e melhores!

Obrigada, Carlos

Carlos Serra disse...

Podes crer, Mimi, que me sinto também muito, muito feliz. Estarei um dia convosco, podes crer. E acabei de responder ao Borralho, diz-lhe isso.

Anónimo disse...

Sou filha da Dra. Hersília Chabert, falecida em 2002, tive o privilégio de ser sua aluna e tenho-a considerado a minha mentora e um modelo a seguir ao longo dos meus “escassos” 28 anos de professora, que, ironia das ironias, se iniciaram em 1976, na Escola Preparatória da Manga, Beira, leccionando História e Geografia. Apesar de um meu irmão já lhe ter respondido para o seu mail pessoal, não quero deixar de lhe dirigir algumas palavras, desta vez para o seu blog pessoal.
O senhor, Sr. Carlos Serra, deve pertencer à leva de cogumelos que, da noite para o dia, se pintaram de preto e se assumiram como pseudo-“engajados” na revolução – não em 1973; não em 1974, mas em 1975, para jogar pelo seguro. Felizmente, e com muito orgulho meu, a minha mãe não foi uma dessas pessoas: manteve sempre a sua dignidade, recusando-se a, uma vez por semana, ir com os professores da manhã “para a culima” plantar ananases (os quais eram à tarde arrancados por outros professores); ou a cuidar dos coelhos que arranjaram para o Liceu Pêro d’ Anaia e que acabaram por apanhar todos sarna. Também se recusou sempre a cantar “Frelimo yáwiná” (perdão se escrevi mal a palavra) nas reuniões de professores. E, no entanto, foi altamente respeitada durante todos os anos que permaneceu em Moçambique – até pela Dra. Celina Costa que refere. Posso inclusivamente dizer-lhe que, durante esses anos 70 excitantemente conturbados, a tentativa de “sanear” a minha mãe por “chumbar muitos alunos” foi parada pelo na altura Secretário de Estado. Ainda me lembro, quase verbatim, das suas palavras: “nessa não tocam, que foi minha professora”. Maior homenagem não pode haver.
A alegada reacção da minha mãe a que se refere nada mais foi do que a reacção de uma professora licenciada, experiente e responsável, ao atrevimento de um jovem pateta, não qualificado, que pretendia levianamente alterar programas oficiais (sublinhe-se a palavra oficiais) com base na leitura, certamente feita à vol d’ oiseau, de um ou dois livros. Já agora, a palavra “subversivo” não fazia parte do vocabulário normal da minha mãe; era “pateta” a palavra que usava para situações como as que refere.
As suas divagações pelo passado não me parecem, pois, mais do que a tentativa de alguém que, já na fase descendente da vida, sentiu necessidade de “dourar” o seu passado, talvez por o presente não corresponder às expectativas. Só lamento que o tenha tentado fazer à custa da minha mãe.
Cristina Chabert

Unknown disse...

Boa tarde caro Professor

Ao ir à procura de locais do passado,"gente"desse mesmo passado encontrei aqui algo que me diz alguma coisa:

- Fui um desses "pioneiros"que consigo ia de fim-de-semana para Manica
- Ainda me lembro dos almoços no Domingo à tarde à beira da Piscina

Sabe quem sou? Recorda-se daquele que subiu a uma gruta muito alta,porque havia um enorme barulho e que trouxe de lá 1 pequeno roedor que amavelmente ( carinhosamente )lhe chamámos "Chinhamapere"? E que depois entregámos a um casal Rodesiano que tinha experiência com esses animaizinhos? Na tal piscina de Vila de Manica!

Sem outro assunto e esperando que tudo esteja BEM,consigo.

Um abraço desde o passado

JA