O que se segue nada tem de novo e apenas recupera e sistematiza pontos já desenvolvidos em postagens anteriores.
1. Um ponto central em algumas das análises feitas sobre a situação política do Zimbawe consiste na sobrevalorização do papel de Robert Mugabe como libertador do país. Consumada a tarefa de asseptizar Mugabe e de o colocar no pedestal retrospectivo de libertador eterno, passa-se imediatamente à crítica daqueles que - é suposto - pretendem diabolizá-lo, daqueles que inscrevem Mugabe numa luta política e nos meios usados para liquidar toda e qualquer oposição ao seu regime. Especial acinte é colocado nos órgãos de informação internacional, considerados tendenciosos porque ao serviço do Ocidente malévolo.
2. Um abre-latas sempre à mão consiste em explicar as derivas do regime enquanto produtos reactivos face ao imperialismo anglo-americano. Por outras palavras, os erros de Mugabe são consequência da forma como o tratam. Como o tratam mal, ele também se torna mau de vez em quando. Paradigmática lógica à Monsieur Jourdain.
3. Singularizada até ao limite a figura de Mugabe, deixa-se deliberadamente na penumbra tudo aquilo que é o sistema de governação, tudo aquilo que é a mecânica das relações sociais de produção, tudo aquilo que é a trajectória de uma elite predadora e enriquecida, por exemplo, na guerra do Congo, tudo aquilo que vai para além da heroicidade da luta de libertação e das sanções do Ocidente, de tudo aquilo que coloca o acento tónico no interior e não no exterior do país.
4. A marginalização dessa trajectória é coroada pela sobrevalorização do rancor anglo-americano e pelo peso asfixiante das sanções. Por outras palavras e nessa óptica, tudo o que se passa no Zimbabwe é (1) produto da forma como tratam Mugabe e (2) produto das sanções de um Ocidente indignado com a expropriação das terras dos farmeiros brancos.
5. Semelhante tipo de análises, algumas das quais se dizem científicas, escamoteia ostensivamente, entre outros, três fenómenos fundamentais no percurso do mugabismo: o genocídio cometido através da operação Gukurahundi, decapitando a elite Ndebele e o seu povo (1982/1986) (ver também aqui) - bem antes da expropriação das terras dos farmeiros, iniciada em 2000-; o ataque aos informais e aos habitantes dos abrigos precários na periferia das cidades através da operação Murambatsvina (2005, cinco anos após o início da expropriação); e a perseguição sistemática dos militantes de direitos humanos (aqui recorde-se Jestina Mukoko), da oposição e do MDC em particular, numa continuidade exemplar e sistemática do percurso sangrento começado em 1982 com Gukurahundi (os externalizadores sequer abordam a forma como têem sido tratados os farmeiros desde 2000).
6. Como escreveram em 2007 (texto de 28 de Março desse ano), sem rebuços, os membros permanentes do Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar: "A situação no Zimbabwe não é resultado duma catástrofe natural ou simplesmente de condições de adversidade international. É largamente infligida pelos próprios donos. É uma crise de liderança moral e de má governação."
(fim)
2 comentários:
A questão é que a situação no Zimbabwe já ultrapassou todos os limites minimamente toleráveis. Já não é sequer crise de governação, é um hediondo crime contra África, contra a humanidade, e como tal deve ser visto.
Tudo quanto se diz sobre o papel de Mugabe como libertador da pátria, sobre o peso das sanções, etc, parece agora um conjunto de tretas, simples manobras dilatórias para os países africanos não abrirem um precedente para futuras interferências externas.
Por muito menos - vejamos as coisas com olhos isentos - não declarou Moçambique sanções à Rodésia do Sul? Antes era o racismo, o colonialismo... E agora, o que é? Algo mais desculpável????????? Acham que sim????
Disse tudo, caro anónimo! Mugabe passou de herói a criminoso:enquistou!
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