16 fevereiro 2008

Seguidismo e vantagens comparativas (4) (fim)

Termino hoje esta série a propósito da interessante crónica de Rogério Sitoe, um trabalho sério que surgiu na imprensa escrita tentando, sem moralismos, responder a esta pergunta: por que aconteceu o 5 de Fevereiro?
Na parte final do número anterior, escrevi que essa crónica era ainda modelar por duas outras razões: (1) por aquilo que marginalizava e (2) por aquilo que não dizia ou que escondia.
O que é que Rogério marginalizou? Marginalizou a análise da geografia da revolta popular, entendeu-a como coisa de somenos, condenou os que a fazem. Melhor: entendeu-a como uma coisa bárbara. Deixem-me recordar o que escreveu: "(...) não me parece que dançarmos com palavras à volta dos pneus, dos paus e varapaus, das montras partidas, dos mortos e feridos, dos marginais e crianças nas manifestações, ou não, e dos prováveis aproveitamentos políticos, ajude muito seja a quem for." O problema é que não se trata de uma dança e muito menos de palavras: trata-se de uma realidade viva, mesmo se dançada pelas palavras desqualificantes de Rogério. O quadro que traçou é, no mínimo, apocalíptico. De uma penada, Rogério Sitoe deu à revolta e aos que procuram descrevê-la o estigma de uma barbárie, de um conjunto de actos saídos do inferno. Não analisou esse quadro (o que era sua obrigação porque cursou Ciências Sociais), vituperou-o, criminalizou-o como alguns outros que enchem aqui e acolá páginas com moralismos condenatórios, vestidos de "tumultos", de "vandalismos", de "oportunismos", de "marginais" e quejandos.
Em segundo lugar, lá veio o habitual refrão - das teses politicamente correctas - dos "aproveitamentos políticos". Ao quadro apocalíptico, Rogério anexou o dedo da vilania política, ainda que ao nível da possibilidade, dos "prováveis aproveitamentos políticos", aproveitamentos que não disse quais eram, mas que passam claramente a mensagem de que, afinal, toda a gente já sabe de quem são. Esta alusão de Rogério, não está, no tempo, distante do editorial do "Notícias" que tentou mostar que os "tumultos" eram obra de uma "mão externa".
Em terceiro lugar, no quadro de marginalizações analíticas operadas por Rogério, vem a pincelada sobre Mercedes e benesses de ministros, quando, a propósito da necessidade de abandonar a dança das consequências em prol do estudo das "forças" e das "causas profundas", escreveu "que vão muito para além dos Mercedes e das benesses de ministros que, retirados, tão pouco resolveriam as carências dos desempregados da Polana Caniço e Maxaquene, quanto mais dos milhares de carentes de todo o país."
E aí, por aí, temos então um ponto capital da análise rogeriana: a penumbração das relações sociais no país (por isso dizemos unicamente coisa do género "nós, os Moçambicanos", "as nossas opções", apesar dos "milhares de carentes" de Rogério, milhares que devem ser milhões), a ocultação, o esvaziamento do quadro dessas relações em que se situaram e se situam as revoltas populares em vários pontos do Sul do nosso país, coisa afinal emblemática das chamadas análises que surgem na praça.
Se tivesse tomado em conta essas relações sociais, Rogério talvez pudesse ter reparado que as vantagens comparativas ricardianas podem ter (e têem) um efeito perverso: elas podem liquidar com a indústria do caju, mas podem, ao mesmo tempo, favorecer (como favoreceram e favorecem) o enriquecimento de uma determinada elite.
Com efeito, quando Rogério correctamente diz que o problema está em nós, no nosso seguidismo, na nossa qualidade de bons alunos de Bretton Woods, na nossa culpa nos custos sociais do seguidismo, não pode, porém, escamotear a realidade de que o seguidismo é vantajoso, que dá lucros, que dá bem mais benesses, ao nível de sistema, do que aqueles que, de forma sardónica, obnubilante, indicou.
O problema, afinal, é que a galinha dos ovos de ouro existe. E também se pode consultar os arquivos da base de dados Hermes da Pandora Box, do Africa Confidential, do Africa Intelligence e do Indian Ocean Newsletter.
Afirmou Rogério Sitoe afirmou que devemos negociar. Creio que ele quis dizer que devemos negociar com as instituições de Bretton Woods. Provavelmente Rogério entende que podemos negociar melhores "termos de troca". Tenho, porém, sérias dúvidas sobre a capacidade dos nossos dirigentes poderem negociar o que quer que seja com o Banco Mundial e com o Fundo Monetário Internacional, pois estas instituições jamais abdicarão de nos imporem as regras que geram o que, correctamente, Rogério chamou "custos sociais". Mas que também geram benesses elitárias sistemáticas.
Quero, porém, acreditar que Rogério Sitoe não fechou a porta a uma coisa para mim fundamental (e creio que para ele também): a negociação com outros parceiros internacionais e regionais de modelos de vida e desenvolvimento com Estados mais sociais, mais solidários, mais ao lado do seu povo, mais capazes de evitar os custos sociais. Porque o neoliberalismo (cada vez mais agressivo, excludente) não é, nem nunca será, a opção nesse sentido. Mas, aqui, caro Rogério Sitoe, tudo depende do tipo de dirigentes que temos, do tipo de opções sociais que eles têem, do tipo de povo que procuram e querem gerir. E, claro, do tipo de intelectuais que temos (analisar à Jerry Okungu não compensa, afinal) .
Mais: se essas opções não forem encontradas, teremos no futuro, por hipótese, um Estado cada vez mais policial, cada vez mais Força de Intervenção Rápida, cada vez mais repressivo. E por quê? Porque, entre outras coisas, Rogério, o povo começou a sair da garrafa. Deixemos caminhar a história. Até porque a saída da garrafa poderá, também, afectar os interesses dos que beneficiam das "vantagens comparativas" de Bretton Woods.
Então, se a tese de Rogério Sitoe é excelente porque teve o mérito de procurar de forma honesta uma resposta à pergunta "quais as causas do 5 de Fevereiro?", não é menos excelente por permitir a vantagem comparativa política de escamotear o quadro das relações sociais sem o qual a análise do 5 de Fevereiro não é possível, atirando para Bretton Woods e para o nosso seguidismo pouco negocial, meio-vitimário, a razão de ser dos sismos sociais no Sul de Moçambique.

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