24 fevereiro 2008

24 de Janeiro/23 de Fevereiro: zona sismológica social


A história de Moçambique não é a mesma desde 24 de Janeiro. Com efeito, entre Manhiça de 24 de Janeiro (quando camponeses exigiram pacificamente a tomada de "medidas imediatas para travar acções de pessoas e empresas que, tendo como interesse central, o lucro e a riqueza, exploram os camponeses associados" e sobre eles caiu a repressão policial ) e Chimoio de 23 de Fevereiro (quando os habitantes da cidade quiseram linchar 12 supostos assaltantes, tendo morto dois homens e uma mulher) - passando por Maputo, Marracuene, Chókuè, Chibuto, Jangamo e Bobole -, um enorme cortejo de fenómenos fez a sua entrada no rol das nossas preocupações.
Esses fenómenos ostentam uma morfologia diversa, dá a impressão de que estamos confrontados com coisas diferentes, de um lado protestos contra a usurpação de terras e a carestia de vida, do outro linchamentos como protesto contra a criminalidade e a ineficiência dos aparelhos estatais de prevenção e resolução de conflitos.
Na realidade, estamos diante de fenómenos diferentes.
Todavia, esses fenómenos diferentes são irrigados e federados por uma mesma fonte, pelo mesmo fio de Ariadne: a saturação popular em meio urbano perante situações que magoam, que ferem, que geram revolta, que rebentam as costuras da resignação e do fatalismo, que subvertem o optimismo dos discursos oficiais, das estatísticas, da saúde macro-económica, que agem com a lógica do efeito dominó, que geram um comportamento violento, que são o rio possesso depois que as margens o comprimiram em demasia.
A usurpação de terra, os preços do pão e dos chapas, os linchamentos, etc., são fusíveis que saltaram, são coágulos de relações sociais assimétricas que se tornaram visíveis em toda a sua crueza e que permitiram a consciência plena das injustiças sociais, são maneiras de avaliar a vida em toda a sua complexidade, são partes de um texto delicado que alguns tentam, desesperadamente, reescrever de maneiras diversas - com recurso à dança dos conceitos, à psicologização de situações e actores, à indigência analítica, à hermenêutica farisaica, ao genuflexismo político, à cobardia, ao jeito bufo, às ferramentas criminalizantes da mão invisível, dos marginais, dos provocadores -, como se o palimpsesto pudesse servir de solução à moda do Barão de Münchhausen, que, caído num pântano, teve a ideia de se puxar a si mesmo pelos cabelos, até conseguir sair, juntamente com o cavalo.
Na realidade, estamos hoje num país onde desde 24 de Janeiro existe uma zona sismológica social que não pode ser nem subestimada nem exorcizada, uma zona sismológica social que pode tornar-se maior.
Estamos confrontados com a desobediência civil? Estamos sim senhor. E de forma feia. Mas também estamos confrontados com a exigência de um Estado mais redistribuidor da riqueza social, mais obediente à justiça social.
Estamos confrontados com a desordem social? Estamos sim senhor. E de forma destruidora. Mas também estamos confrontados com a exigência de uma ordem social diferente, com a busca de uma sociedade menos criminalizada, menos segregadora de criminalidade.
Estamos confrontados com uma rebelião contra o Estado? Não senhor. Estamos, sim, confrontados com uma rebelião contra um Estado distante, sentido como não protector dos excluídos.
Finalmente, uma das perguntas fundamentais que os dirigentes do Estado deverão fazer-se é a seguinte: por que razão as pessoas não confiam nos órgãos formais de prevenção e resolução de conflitos? Por outras palavras: qual a razão por que nos atemos exclusivamente às consequências das manifestações e não analisamos as suas causas? Por que é tão importante o rio a juzante e não a montante (leiam, por favor, a postagem mais acima sobre a posição de João Castande)?
Nota: camponesas da Manhiça, foto de Inácio Pereira, inserta na edição de 13 de Fevereiro do semanário "Magazine Independente", p. 16.

3 comentários:

Anónimo disse...

"Mão invisível", é o velho papo do perfeito perdedor, que se recusa cegamente de aceitar a derrota, mesmo no chão. Creio que é só o início da revolta, qu os verdadeiros fazedores de história se sentem extremamente explorados e desprotegidos, e se governos como o da FRELIMO não se puserem ao serviço da gente, só se iråo ecurralar. Se até Mobutu "o invencível", Abacha " o militar" foram encurralados, não vejo porquê Guebuza ou Chissano não o seriam.

Xiluva/SARA disse...

Reparo que mudou o parágrafo inicial, antes o marco era 5 de Fevereiro..

Carlos Serra disse...

Efectivamente mudei, pois estava a ser inexacto, estava a esquecer o 24 de janeiro. Penso que agora o quadro é mais real.