Deixem-me avançar nesta série - que entronca no 5 de Fevereiro -, tentando meter-me dentro do espírito de certos intelectuais e políticos normalizadores da praça, alguns dos quais têm horror não ao váculo, mas à desordem, às multidões, ao protesto social, purificados que estão em permanência pela razão, pela justiça primordial, pelo estado de equilíbrio e pelo açucarismo epistemológico.
Fazendo-o, estou certo de que os leitores saberão imediatamente que tudo o que irei escrever é, obviamente, graças a informações dignas de crédito obtidas de um nhamessoro a quem entreguei duas galinhas para que ele, através do galináceo sangue vitimário, me revelasse o segredo do pensamento conspiratório, sem que eu precisasse investigar o que quer que seja.
Tal como escrevi no número anterior, para que o efeito da desqualificação possa ser amplo e definitivo, importa dissociar uma entidade substantiva considerada pura e pacífica - o Povo - de duas categorias consideradas impuras e maléficas: os provocadores externos e os oportunistas, os autores da violência, da desorganização social, do caos, do atentado à razão, ao equilíbrio.
E como se define a entidade substantiva? Por recurso analógico às famílias semânticas de natureza médica (normal/patológico, são/doente). Definida a entidade substantiva através de uma varinha mágica, duas características são-lhe atribuídas: o estado natural de pureza/bonomia e o estado natural de paz. Assim, o povo moçambicano é considerado, por natureza, por geração espontânea, ab initio, puro, pacífico, ordeiro, alegre, jovial, etc. Mas a partir de quando? Obviamente que a partir da independência nacional. Como assim? A explicação é fácil: na vigência do colonialismo português, o povo era por natureza rebelde, tornou-se rebelde por causa do colonialismo. A partir da independência nacional, tornou-se ordeiro, melhor dito, readquiriu a natureza bondosa e pacífica que o colonialismo lhe furtara. Se já era independente, independente também devia ser do protesto, da contestação, da crítica. Mas agora um parêntesis: então, o que dizer dos magermane? Resposta dos normalizadores integristas: esses ficaram doentes lá na antiga RDA, apanharam lá o vírus da desordem, por isso estão irremediavelmente doentes. Bem: e a Renamo? A Renamo é a desordem pura, exterior, estrangeira ao puro povo moçambicano pós-independência, produzida nos laboratórios da ex-Rodésia do Sul e da África do Sul, um produto integral e definitivamente patológico, infraccional, da ordem dos vírus.
Traçado assim o quadro integrista, normalizador e normalizado do Povo puro, incapaz de, por ele próprio, criticar, fazer greves, opor-se - pois reassumiu por inteiro a pureza, a bondade e o pacifismo originais e por isso está impermeabilizado -, faltava criar um quadro desestabilizador, patológico, exterior: o a mão externa, o da mão estrangeira.
Mas a criação da mão externa só faria e só faz sentido se agindo não sobre a pureza, a bondade e o pacifismo definitivamente readquiridos, mas, antes, sobre duas entidades, uma anti-popular, outra sem possibilidades de defesa: os marginais e as crianças. Os primeiros são os oportunistas, as sanguessugas, os vírus do sistema; as segundas, são a pureza e a natureza indefesas, lamentavelmente ainda moldáveis como o barro. Para os normalizadores, a história do 5 de Fevereiro resume-se a isso: mão externa, marginais e crianças, tudo metido numa multidão que alguns retiram de uma visita pela net aos estudos de Le Bon.
Nota: a qualquer momento posso corrigir algo aqui, o que, a suceder, me levará a assinalar a vermelho as modificações. Por outro lado, prosseguirei nas próximas hora uma outra série: "Tipo e características de luta na revolta popular de Maputo"
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