Segundo o "Notícias" de hoje, "Cantoneiras e parafusos foram roubados em três torres da linha de 110 KV da rede nacional da EDM – Electricidade de Moçambique, entre o Alto-Molócuè e Guruè, na província da Zambézia, numa ocorrência considerada grave e alarmante."
Esse um tipo de notícia que se repete regularmente na nossa imprensa.
Mas o roubo do desenvolvimento visa outro tipo de desenvolvimento.
Em 2008, por exemplo, escrevi o seguinte: "Um bocado por todo o lado, os ladrões do desenvolvimento roubam cabos eléctricos, transformadores, cantoneiras, espias, fio de terra, óleo mineral, lâmpada de semáforos, etc. Na cidade de Maputo, pelo menos sete em cada 100 clientes da Electricidade de Moçambique estão a consumir energia eléctrica ilegal, com recurso a ligações clandestinas (...) Todavia e ainda que poucos indicadores existam sobre o uso que é dado aos produtos do roubo, pode colocar-se como hipótese razoável que são largamente usados no artesanato popular, em suas múltiplas actividades. Tudo o que é roubado é vendido ou transformado. Nada se perde, tudo se aproveita e se retransforma. Aliás, o semanário "Domingo" de hoje reporta que o roubo de cantoneiras e de material eléctrico destina-se ao "fabrico de objectos de cozinha, potes, panelas, talheres entre outros" (p. 7)."
4 comentários:
“Num país de faz de conta, tudo acaba em tanto faz”.
Usei este pensamento num artigo sobre a dimensão da informalidade em Moçambique (http://www.iid.org.mz/impacto_da_economia_informal.pdf). Disseram-me que faz parte de uma canção brasileira, mas até hoje não consegui confirmá-lo. Contento-me com o pensamento, por sinal bem aplicável ao comentário de Serra (elogioso?) sobre o roubo ao desenvolvimento para desenvolver outras coisas.
O raciocínio de Serra sobre a transformação do produto roubado, em outros bens úteis, transporta-nos para a célebre frase de Lavoisier, aprendida na escola secundária: Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Não há dúvida que em Moçambique, há quem se esmere em fazer dos moçambicanos mais naturais e menos sociais e humanos. Mas não será a complacência para com roubo um dos elementos inevitáveis da tragédia dos comuns, na perspectiva de Garret Hardin?
Não é de admirar que em países, onde o respeito pela propriedade (pessoal, privada e pública) permaneça um direito precário, um dos muitos direitos de “faz de conta”, se privilegie e institua a cultura de irresponsabilidade individual e social.
Para complicar as coisas, há quem defenda (inspirados em Proudhon, Marx e tantos outros) que a propriedade privada é um roubo por excelência. Com estas e outras posições, vale a pena tentar entender o que é desenvolvimento?
AF
AF: o problema não está em defender o roubo e em desrespeitar a propriedade. O problema está em verificar que o roubo no sector A dá origem ao desenvolvimento de outra coisa no sector B. Não creio que esteja errado dizendo assim as coisas...
Roubar o Desenvolvimento para Desenvolver ou Subdesenvolver Outras Coisas?
É verdade, Serra. Tem razão, mas só parcialmente e de forma enganadora, quanto ao ponto sobre o papel do roubo na transferência de recursos do sector A para o sector B. Se a sua intenção era limitar-se à descrição do assunto, desculpe-me por ter tentado ir além da perspectiva ingénua e neutral com apresenta o assunto. Mas repare. Se quiser ser rigoroso, e eu acredito que o Serra trata os assuntos neste seu Blog com elevado profissionalismo e seriedade, transferir valor de um sector para outro não induz, como afirma, “ao desenvolvimento de outras coisas”.
Deixe explicar-me porque, num sentido rigoroso, sobretudo do ponto de vista económico, é errado colocar as coisas como coloca.
Antes disso, permita-me dissipar alguns equívocos. Primeiro, tal como tantas outras portagens com que delicia centenas de visitantes assíduos do seu blog, esta notícia sobre “Roubar o desenvolvimento para desenvolver outras coisas” tem um grande mérito. Expõe uma realidade importante e eventualmente, como aconteceu comigo, inspira reflexões analíticas e críticas. Se a minha nota causou impressão que estivesse a moralizar o assunto, desculpe-me pela confusão.
Em segundo lugar, aceite as minhas felicitações pelo destaque a este assunto do roubo ao desenvolvimento e outros na mesma linha. Encorajo-o a persegui-lo, pois em vez de moralizar sobre o assunto está a expor a natureza de uma das instituições mais poderosas da racionalidade económica prevalecente actualmente na economia moçambicana. O roubo, tal como a corrupção, a fraude, o tráfico de diversos tipos, e o que vulgarmente temos apelidado de cabritismo, são instituições muito fortes e determinantes na nossa economia nacional. Tenho tentado aprofundar este assunto com os meus estudantes na disciplina de economia de desenvolvimento, em ligação com o papel das instituições, do comportamento racional e dos modelos de crescimento económico.
O que me parece importante debater, ou talvez mesmo questionar, mas de forma rigorosa e fundamentada, é o facto de tais instituições incentivarem as pessoas a desenvolverem actividades de transferência, em vez de realmente produtivas e geradoras de valor acrescentado e riqueza nacional.
O roubo, no sentido económico, representa uma transferência e não de criação de valor acrescentado. Quando afirma que “desenvolve outras coisas” utiliza o termos desenvolvimento de forma vulgar, deixando a ideia que o simples facto de as pessoas converter o produto roubado em alguns objectos úteis, representa uma função produtiva agregadora de valor.
As actividades de transferência não transformam nem agregam valor, mas sim transferem bem-estar de umas pessoas para outras. Em vez de aumentarem o montante total de bens produzidos na economia, o que neste caso fazem é destruir um certo valor produzido para produzir bens que valor de menor valor.
Deixando de lado os poucos outliners produtivos ainda existentes na indústria moçambicana (e.g. Mozal, indústria açucareira e algumas outras) a descrição do “Domingo”, ao reportar que o roubo de cantoneiras e de material eléctrico se destina ao "fabrico de objectos de cozinha, potes, panelas, talheres entre outros", só faltava sugerir ao INE que inclua esta actividade supostamente transformadora na rubrica da indústria transformadora.
À primeira vista, este processo supostamente transformador tem uma utilidade social produtiva. Mas é só à primeira vista. Numa segunda análise, sem entrar nos aspectos morais da questão do roubo, este penalizada a sociedade em dois sentidos. Por um lado, força o Estado a afectar recursos para fins improdutivos, como é o caso de policiar e combater o roubo e outros crimes. Por outro lado, o tipo de transferências como o roubo, fraudes e corrupção, quando generalizadas e crónicas, desencorajam ou mesmo inviabilizam as actividades que a longo prazo realmente conduzem ao crescimento económico.
Existem duas formas importantes de enriquecer ou, neste caso, melhor será dizer sobreviver, já que o tipo de roubo em causa é mais para sobrevivência do que propriamente enriquecer: (1) Produzir algo que tenha valor; e (2) Apoderar-se do valor criado por outrem. O caso em referência, tem mais a ver com a última do que a primeira opção de enriquecimento ou sobrevivência.
As instituições só contribuem para a melhoria do bem-estar colectivo se canalizarem os esforços das pessoas para actividades produtivas, através da inovação, melhoria da produtividade e aperfeiçoamento da eficiência da sociedade em geral. Em contra partida, quando as instituições prevalecentes canalizam recursos mais para actividades de transferência (neste caso o roubo) do que para actividades produtivas que aumentem o bem-estar colectivo, tais instituições atrasam mais do “desenvolvem”. Ou seja, voltando ao seu título, em vez de desenvolverem subdesenvolvem coisas.
Neste sentido, o seu título seria perfeito com uma ligeira mudança: “Roubar ao desenvolvimento para subdesenvolver coisas”. Existem outros exemplos elucidativos, que talvez o próprio Serra já tenha reportado no passado. Recordo-me de um nosso conhecido comum, ter-me contado que em certas zonas do Vale do Zambeze já aconteceram casos de pessoas serem apanhadas a desmontarem pontes para venderem o ferro como sucata. No sentido em que colocou as coisas, estaríamos perante um outro exemplo de roubo para desenvolvimento “outras coisas”, incluindo serviços sucateiros.
Mas este é o tipo de (sub) desenvolvimento, no sentido de desenvolvimento destrutivo de um produto com certo valor económico em subprodutos com valor inferior. Nesta perspectiva, a questão dos direitos de propriedade assume um significado que ultrapassa o sentido moral e sobretudo ideológico. Um significado principalmente económico.
Num país, onde os direitos de propriedade estejam claramente definidos e efectivamente defendido, o comportamento racional das pessoas é orientado para as actividades produtivas. Lembro-me de uma discussão interessantíssima numa das aulas, quando questionei os estudantes sobre a diferença entre a lei de chicotadas, no tempo de Samora Machel, e a lei de chicotadas em Singapura. Qual a diferença entre estas duas leis, do ponto de vista de desenvolvimento?
Quando estava na Austrália, durante o meu doutoramento, lembro duma controvérsia que um Tribunal em Singapura provocou nos círculos ocidentais, ao condenar uns jovenzinhos, filhos de diplomatas, que decidiram vandalizar carros com tinta de spray. Ora, como estamos recordados, na primeira década de independência, muitas pessoas foram chicoteadas, por pensarem ou expressarem ideias diferentes da ideologia do regime. Em suma, enquanto a lei de chicotada em Singapura protege a ordem pública, as pessoas e os bens pessoais e privados, a lei da chicotada no tempo do socialismo científico gerou subdesenvolvimento.
Tem sentido o meu argumento? Ou com esta última parte, acabo por provocar uma outra controvérsia, ao abrir o flanco para que alguém me acuse de estar a defender o retorno da lei da chicotada?
Desculpe por me ter alongado, mas obrigado pela inspiração que provocou.
Um abraço
AF
AF, perdoe-me, respondo amanhã...
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