Fazendo-o, tenho para mim ser fundamental recordar um secular mecanismo simbolicamente neutralizador da riqueza.
Por exemplo, em documento referente ao século XVI (poderia arrolar muitos outros documentos do mesmo género e de períodos históricos distintos), Francisco Monclaro escreveu o seguinte a propósito das comunidades camponesas (muchas) do centro do país, mas, também, do Zimbabwe:
"E se acontece que algum deles é mais diligente e granjeador e por isso colhe melhor novidade e cópia de mantimento, logo lhe armam couzas falsas por onde lho tomam e comem, dizendo: porque razão haverá aquele mais milho que outro, não atribuindo isto a maior indústria e deligência, e muitas vezes por esta culpa o matam para lhe comerem tudo (...)"*
Esta crença era invariavelmente expressa através de uma acusação de feitiçaria.
Por outras palavras: era considerado ilícito todo o processo de acumulação realizado à margem das relações existentes, especialmente parentais. Enriquecer era ferir a comunidade, o igualitarismo aldeão.
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* Monclaro, Francisco, Relação da Viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista do Monomotapa no ano de 1569, in Documenta Índica, vol. VIII, p. 683 et segs.
Adenda: um leitor disse-me por email que Ionge aparece como Longe na série que está a ser publicada no semanário "Savana". Procurarei que o erro seja emendado nos números seguintes. Obrigado pela chamada de atenção.
2 comentários:
Professor,
1. Não é preciso recuar tanto no tempo... ou antes, a situação mantêm-se.
Hoje, em muitas das nossas comunidades rurais, se perguntar ao camponês porque não cria mais galinhas, coelhos, patos, ou planta mais árvores de fruto, para melhorar a dieta alimentar da família e obter excedentes comercializáveis, ouvirá, em muitos casos, como resposta:
“Não dá! Só resultaria se toda a comunidade fizesse o mesmo, pois, se apenas eu prospero, alguém (da comunidade) tratará de criar condições para a desgraça de minha família”.
Uma espécie de sentimento de Inveja (na perspectiva de quem tem uma visão holística), ou, simplesmente o “igualitarismo aldeão”, que refere, na perspectiva rural, de quem tem uma visão arcaica, animista, não científica do mundo.
De 1569 aos dias de hoje, passam quase seis séculos. O meio rural continua sem as infra-estruturas de base que potenciem o desenvolvimento económico e do Homem.
Ignorando o Estado – que os ignora – regridem a métodos arcaicos (à sua visão do mundo) para resolução de conflitos.
Somos um país com diferentes mundos!
AM
Bem, AM, obrigado pelo comentário. Prosseguirei, da maneira desorganizadamente organizada que me é habitual. Ficou-me o gosto dos anos em que passei milhares de horas a estudar documentos antigos e amarelos. Abraço.
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