A situação política no Quénia (mas não só, claro) talvez seja uma boa ocasião para trazer aqui a debate um texto dramático, controverso, divulgado em 2000 e que tem a política africana como seu eixo. O seu autor é o francês Jean-Pierre Olivier de Sardan, director de estudos da École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e director de pesquisa do Centre national de la recherche scientifique (CNRS) e do IRD (LASDEL, Niamey, Nigéria). O texto foi publicado em português na versão brasileira do Le Monde Diplomatique :"Quatro golpes de Estado, em apenas um ano, voltam a expor os limites de uma "democratização" que gerou pluripartidarismo e alguma liberdade de imprensa, mas não admite alternância no poder." (obrigado ao SC por me ter chamado a atenção para esse trabalho).
Entretanto, a edição do "Savana" desta semana contém uma importante crónica do seu editor, Fernando Gonçalves, que aqui reproduzo na íntegra:
"Quénia, um banho de sangue à espreita
Depois de algumas semanas de umas férias bem merecidas, aqui volto para continuar a comunicar com os estimados leitores.
Encontrando-me em Dar-es-Salaam durante a semana passada, pude compreender a verdadeira dimensão regional da crise pós-eleitoral no Quénia.
Muitas vezes temos a tendência de olhar para o outro lado quando países vizinhos enfrentam períodos de crise, encobertos na conveniente noção de que é politicamente indecente metermo-nos nos problemas dos outros. Nem que seja mesmo para expressar a nossa apreensão.
Mas a crescente tendência da integração regional e do fenómeno da globalização já não permite que continuemos com este tipo de comportamento de avestruz. O que acontece na vizinhança tem um efeito contagiante sobre nós. Que não tenhamos ilusões.
A integração regional na África Oriental está tão avançada que a situação política em qualquer um dos estados membros tem repercussões socioeconómicas de grande alcance imediatas em todos os outros países.
É por isso que os tanzanianos encaram a actual crise no Quénia como se fosse sua. O mesmo se diz dos ugandeses.
Desde que a crise eclodiu no dia 29 de Dezembro que o assunto tem consumido manchetes na imprensa tanzaniana e ocupado espaço nobre nos noticiários das estações de rádio e televisão.
Existem pelo menos 13 jornais diários e 20 semanários de referência na Tanzânia. Praticamente nenhum deles sai à rua sem uma referência sobre a explosiva situação que se vive para além da sua fronteira norte.
Há razões para justificar tamanha apreensão. O Quénia possui a economia mais robusta e dinâmica da África Oriental. Para além do Rwanda e do Uganda, que dependem directamente do porto de Mombasa para as suas operações comerciais externas, a Tanzânia diz que está a sofrer prejuízos que rondam os seis milhões de dólares por semana como consequência directa da crise.
Para além dos prejuízos económicos, o Uganda tem que lidar com uma outra situação não menos complicada.
Rail Odinga é proveniente da região de Eldorete, na fronteira ocidental do Quénia com o Uganda.
Na sequência do anúncio dos controversos resultados eleitorais no dia 29 de Dezembro, seguido da investidura de Kibaki 15 minutos depois, o Presidente do Uganda, Yoweri Museveni, foi o primeiro líder — e até aqui o único — a reconhecer Kibaki como o legítimo vencedor. O gesto de Museveni deixou muitos observadores perplexos, dado que até ao momento em que a contagem de votos foi interrompida no dia 28, Odinga esteve sempre à frente. Alguns interpretam o gesto como típico para um homem como Museveni, sempre sedento de protagonismo.
Talvez Museveni não tivesse previsto o que viria a acontecer. As populações do Oeste do Quénia não o perdoam por este aparente erro de juízo, e como retaliação não permitem que camiões transportando bens provenientes ou que se destinem àquele país atravessem a fronteira comum.
Estes são os danos colaterais de uma crise para a qual todos os sinais apontam que está apenas na sua fase embrionária. Devemos estar preparados para um futuro de uma sustentável situação de conflito, com uma forte componente de violência.
Não há uma diferença marcante entre os actuais acontecimentos no Quénia e o genocídio do Rwanda em 1994.
A única diferença está na amplitude. E isso, graças às diferenças em tamanho entre os dois países. Mas as características principais estão todas lá: cidadãos enfurecidos empunhando todo o tipo de arma branca marchando em assalto contra os seus presumíveis opositores, massacres em locais de culto, e a etnicização daquilo que é, essencialmente, um problema político.
O que está a acontecer hoje no Quénia deve constituir motivo de vergonha para qualquer africano. Com toda a sua história de um país de sucesso no meio de um continente caótico, o Quénia tinha a responsabilidade de continuar a servir de modelo e de inspiração para muitos africanos.
Mas não é assim como pensam os políticos. Para eles, o poder é um fim em si próprio. Não é um meio para melhor servirem os seus compatriotas. Não surpreende, por isso, que, apesar de todas as demarches que estão a ser encetadas por líderes africanos para ajudar a resolver a actual crise, nenhum deles teve ainda a coragem de vir a público reconhecer que aquilo tudo foi uma vergonhosa fraude mal engendrada por um grupo de amadores.
Mesmo depois de o presidente da comissão eleitoral ter admitido que não tinha a certeza sobre qual dos dois candidatos tinha ganho as eleições.
Se a minha opinião servisse para alguma coisa, penso que no lugar de se tentar encontrar uma solução de compromisso para acomodar interesses políticos, seria de extrema importância aceitar que o direito do povo queniano à livre escolha deve ser escrupulosamente respeitado.
Nesse sentido, e nas actuais circunstâncias, seria mais sensato anular as eleições presidenciais, formar um governo de transição incorporando as duas partes, e convocar novas eleições supervisionadas pela comunidade internacional. Só assim se poderá salvar o Quénia do banho de sangue que está à espreita." (p. 11).
Depois de algumas semanas de umas férias bem merecidas, aqui volto para continuar a comunicar com os estimados leitores.
Encontrando-me em Dar-es-Salaam durante a semana passada, pude compreender a verdadeira dimensão regional da crise pós-eleitoral no Quénia.
Muitas vezes temos a tendência de olhar para o outro lado quando países vizinhos enfrentam períodos de crise, encobertos na conveniente noção de que é politicamente indecente metermo-nos nos problemas dos outros. Nem que seja mesmo para expressar a nossa apreensão.
Mas a crescente tendência da integração regional e do fenómeno da globalização já não permite que continuemos com este tipo de comportamento de avestruz. O que acontece na vizinhança tem um efeito contagiante sobre nós. Que não tenhamos ilusões.
A integração regional na África Oriental está tão avançada que a situação política em qualquer um dos estados membros tem repercussões socioeconómicas de grande alcance imediatas em todos os outros países.
É por isso que os tanzanianos encaram a actual crise no Quénia como se fosse sua. O mesmo se diz dos ugandeses.
Desde que a crise eclodiu no dia 29 de Dezembro que o assunto tem consumido manchetes na imprensa tanzaniana e ocupado espaço nobre nos noticiários das estações de rádio e televisão.
Existem pelo menos 13 jornais diários e 20 semanários de referência na Tanzânia. Praticamente nenhum deles sai à rua sem uma referência sobre a explosiva situação que se vive para além da sua fronteira norte.
Há razões para justificar tamanha apreensão. O Quénia possui a economia mais robusta e dinâmica da África Oriental. Para além do Rwanda e do Uganda, que dependem directamente do porto de Mombasa para as suas operações comerciais externas, a Tanzânia diz que está a sofrer prejuízos que rondam os seis milhões de dólares por semana como consequência directa da crise.
Para além dos prejuízos económicos, o Uganda tem que lidar com uma outra situação não menos complicada.
Rail Odinga é proveniente da região de Eldorete, na fronteira ocidental do Quénia com o Uganda.
Na sequência do anúncio dos controversos resultados eleitorais no dia 29 de Dezembro, seguido da investidura de Kibaki 15 minutos depois, o Presidente do Uganda, Yoweri Museveni, foi o primeiro líder — e até aqui o único — a reconhecer Kibaki como o legítimo vencedor. O gesto de Museveni deixou muitos observadores perplexos, dado que até ao momento em que a contagem de votos foi interrompida no dia 28, Odinga esteve sempre à frente. Alguns interpretam o gesto como típico para um homem como Museveni, sempre sedento de protagonismo.
Talvez Museveni não tivesse previsto o que viria a acontecer. As populações do Oeste do Quénia não o perdoam por este aparente erro de juízo, e como retaliação não permitem que camiões transportando bens provenientes ou que se destinem àquele país atravessem a fronteira comum.
Estes são os danos colaterais de uma crise para a qual todos os sinais apontam que está apenas na sua fase embrionária. Devemos estar preparados para um futuro de uma sustentável situação de conflito, com uma forte componente de violência.
Não há uma diferença marcante entre os actuais acontecimentos no Quénia e o genocídio do Rwanda em 1994.
A única diferença está na amplitude. E isso, graças às diferenças em tamanho entre os dois países. Mas as características principais estão todas lá: cidadãos enfurecidos empunhando todo o tipo de arma branca marchando em assalto contra os seus presumíveis opositores, massacres em locais de culto, e a etnicização daquilo que é, essencialmente, um problema político.
O que está a acontecer hoje no Quénia deve constituir motivo de vergonha para qualquer africano. Com toda a sua história de um país de sucesso no meio de um continente caótico, o Quénia tinha a responsabilidade de continuar a servir de modelo e de inspiração para muitos africanos.
Mas não é assim como pensam os políticos. Para eles, o poder é um fim em si próprio. Não é um meio para melhor servirem os seus compatriotas. Não surpreende, por isso, que, apesar de todas as demarches que estão a ser encetadas por líderes africanos para ajudar a resolver a actual crise, nenhum deles teve ainda a coragem de vir a público reconhecer que aquilo tudo foi uma vergonhosa fraude mal engendrada por um grupo de amadores.
Mesmo depois de o presidente da comissão eleitoral ter admitido que não tinha a certeza sobre qual dos dois candidatos tinha ganho as eleições.
Se a minha opinião servisse para alguma coisa, penso que no lugar de se tentar encontrar uma solução de compromisso para acomodar interesses políticos, seria de extrema importância aceitar que o direito do povo queniano à livre escolha deve ser escrupulosamente respeitado.
Nesse sentido, e nas actuais circunstâncias, seria mais sensato anular as eleições presidenciais, formar um governo de transição incorporando as duas partes, e convocar novas eleições supervisionadas pela comunidade internacional. Só assim se poderá salvar o Quénia do banho de sangue que está à espreita." (p. 11).
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