Falta ainda fazer em profundidade a história dos traumas decorrentes da guerra civil terminada em 1992 e que durou cerca de 16 anos. A história psiquiátrica, por exemplo. Em 1999, o psicólogo Bóia Júnior escreveu que se corria o risco de os traumas tornarem-se transgeracionais. Falta, afinal, fazer muita coisa. Falta avaliarmos a relação entre democracia e memória colectiva da guerra. Finalmente, deixem-me colocar aqui os testemunhos de duas ex-crianças-soldado.
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Extracto de Castanheira, Narciso, Ex-criança soldado, Não queremos voltar para o inferno. Maputo: Reconstruindo a Esperança, 1999, p. 5. Saraiva de Sousa: pode comentar este tema?
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
11 comentários:
Os depoimentos dos dois rapazes são muito interessantes e revelam bom senso, o que é muito bom em termos de «saúde mental».
Mário Melice fala de «baptismo como soldado», uma espécie de ritual de iniciação onde teve de provar a sua «bravura masculina», matando «um velhote cuja carne nos obrigaram a cozer e comer, para no fim bebermos água suja utilizando uma caveira humana como copo». É evidente que aqui está em causa a irracionalidade das práticas exigidas aos jovens (canibalismo), que, de resto, se viram privados da sua infância e adolescência e obrigados a serem «adultos antes do tempo».
O testemunho de Muando Nguilamba que «já era comandante» de guerrilha aos 14 anos é mais político: «Afinal quantas pátrias tenho eu?» Depois de servir na guerrilha como comandante, tem de servir no exército nacional como recruta, e, provavelmente, sem remuneração justa.
É evidente que estas experiências precoces de guerra são muito traumatizantes e deixam marcas e sequelas psicológicas e neurocomportamentais para toda a vida e podíamos aqui referir diversas perturbações de adaptação, de desenvolvimento, de comportamento, de personalidade e aquela que está mais associada à guerra - o stress pós-traumático, cuja história terão de fazer, levando em conta o facto desses traumas serem quase transgeracionais, como diz Bóia Júnior.
contudo, quando comparo estas experiências dos jovens moçambicanos, de resto perfeitamente «recuperáveis» a avaliar pelos testemunhos lúcidos apresentados, com a «anestesia» dos jovens eeuropeus, fico deveras preocupado com o futuro da masculinidade e dos «machos», dada a sua fragilidade biológica. E seria a esta luz - a da fragilidade biológica dos homens em comparação com as mulheres - que gostaria de analisar o tema que me propõe. Logo que tenha tempo, irei editar post sobre a fragilidade biológica dos machos, agravada socialmente nos testemunhos moçambicanos pela violência de impedir os rapazes de seguir normalmente o seu desenvolvimento, roubando-lhes a adolescência e obrigando-os a cometer actos irracionais para provar a sua «masculinidade ou bravura». De resto, não é desse modo que se fazem cidadãos adultos e responsáveis...
Nós homens são, em linguagem coloquial, ligeiramente mais filhos do pai do que da mãe, porque é do pai que recebemos o cromossoma Y e o gene responsável pela nossa masculinidade, o SRY.
Uma vez diferenciados, os testículos começam a produzir testosterona que, mediante diversos mecanismos, irá diferenciar o nosso cérebro e comportamento numa via masculina.
E a nossa história fica assim marcada: experiências como as testemunhadas aqui por dois casos de rapazes moçambicanos podem vir a ser «responsáveis» por comportamentos criminais, delinquentes e pura violência, se esses jovens não forem acompanhados e reinseridos na sociedade.
Quanto à relação entre democracia e memória colectiva da guerra,pouco tenho a dizer, a não ser desafiá-lo a trabalhar esse tema e partilhar conosco os seus resultados.
Obrigado. Espero que o que escreveu possa suscitar mais intervenções.
Outro aspecto interessante que detectei nos dois testemunhos foi uma certa revolta e sentido de «injustiça» (talvez relacionada com a acumulação do capital!?), atitudes típicas daqueles que se sentem socialmente excluídos. Estes comportamentos foram confirmados por neuro-estudos de exclusão social e, se tudo estiver «correcto», essa «agressividade» pode explodir em sentidos imprevisíveis. Daí a necessidade de apoiar esses jovens...
É possível colocar no diário mais depoimentos, verei a oportunidade disso.
Xamuáli Carlos há milhares dessas antigas crianças velhos mais cedo.
E nenhum estudo sobre elas após o trabalho, anos atrás, do Bóia Júnior.
O mal está feito. O drama presente é a falta de acompanhamento destes jovens, sem preparação escolar, sem perspectivas do amanhã: são um barril de pólvora. Por eles e pela sociedade em geral: olhemos por eles.
Mas não nos esqueçamos do sexo feminino: crianças, adolescentes, jovens, mulheres raptadas e transformadas em meras fêmeas, instrumentos de prazer de comandantes e machos em geral.
> Quantos traumas! Quanta insensibilidade por parte de quem governa.
Florêncio
O livro do Castanheira dedica muito espaço a elas. Verei se amanhã dou conta de um dos relatos.
Em Moçambique fala-se sempre da guerra civil ao tratar o tema da criança-soldado. É verdade que aí foi mais que brutal o que aconteceu, mas para estudar a questão de uma maneira isenta, não é de esquecer que a luta de libertação nacional também se serviu delas.
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