23 setembro 2007

A cultura acústica dos Moçambicanos (8) (continua)

"Por minha fé ! Há mais de quarenta anos que digo prosa sem o saber e estou-vos imensamente grato por me terdes mostrado isso" (Monsieur Jourdain em "Le Bourgeois Gentilhomme")
A cultura acústica dos Moçambicanos foi violentada quer pelo colonialismo quer pela Frelimo no pós-independência. O Sr. Miguel Lopes faz verdades com tanta naturalidade como o Sr. Jourdain fazia prosa: sem se aperceber.
Qual o fio condutor da análise de Lopes? Este: estrangeiros ao tempo e às transformações sociais, do agricultor pré-colonial ao presidente Guebuza, os Moçambicanos são uma por natureza iguais, impermeáveis às diferenças sociais, acústicos, esféricos, metafóricos, inclinados a montes de coisas graças ao dom do ouvido, exímios na dança, nas pausas, nas repetições, nas metáforas, nas brincadeiras, enfim, os Moçambicanos amam ouvir e contar histórias. Vivem no cultural, na língua, no doce enlevo rousseauista, pela diástole expelem especificidade, pela sístole recusam o que, porque não acústico, os magoa, os desacusticiza (esta tese do magma cultural torna-se cada vez mais corrente no país, à medida que as desigualdades sociais se ampliam. Na verdade, fará cada vez mais falta aos gestores dos destinos apresentar interesses particulares como interesses universais, como interesses de todos).
Eles, os acústicos, viviam num céu de pureza edílica que, lamentavelmente, Portugueses e Frelimos vieram estragar (mas, pelo conceito lopesiano, dele guardam a alma, uma vez que são, hoje ainda, habitados em permanência pelo presente do indicativo de Lopes, presente ele-também acústico).
Qual o grande inimigo da acusticidade, qual o ariete dos estragadores? A língua portuguesa. Se não fosse a língua portuguesa, se a acusticidade tivesse sido respeitada, teríamos evitado muitos problemas, entre eles o analfabetismo. Mais: se acusticidade não for respeitada, corremos dois riscos severos: primeiro, as culturas acústicas podem desaparecer por desaparecerem as suas línguas densamente acústicas, tal - salientou Lopes - como têm desaparecido espécies animais e vegetais; segundo, porque podem um dia surgir conflitos étnicos de consequências nefastas (pena que o Museu de História Natural na cidade de Maputo tenha em exposição um ainda muito modesto acervo de cultura acústica congelada para visitantes).
A cultura acústica de Lopes tem o mesmo valor anestesiante que tinham a "substância", a "consciência de si", o "género", o "único" e o "homem" que Marx e Engels (que fósseis, que fósseis!) tanto criticaram na ideologia alemã oitocentista.
Mas, afinal, qual foi a lógica do sistema colonial em relação à acusticidade lopesiana? Prosseguirei, claro.

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gosto muito deste seu trabalho e do modo subtil como enuncia as suas teses, cujo alcance teórico e político escapam provavelmente a alguns leitores desprevenidos ou acríticos.
Acabei de editar post no Cyberbiologia e Cybermedicina, que de certo modo se inspirou na sua notícia das doenças mentais em Moçambique.

Carlos Serra disse...

Olá! Sim, vou já ler!

Carlos Serra disse...

Excelente! A propósito da educação médica ocidental lembrei-me do etnopsiquiatra Tobie Nathan e, especialmente, de um dos seus livros, o "L´influence qui guérit". Vou colar esta postagem no seu blogue. Abraço.