02 fevereiro 2008

Raça, etnia e riqueza social

"Todas as raças têm um bocado de racismo, isso depende da classe" - observação de uma estudante da 12a classe em 1999
Permitam-me reproduzir aqui, de forma adaptada, passagens de um livro meu mais abaixo referenciado:
"Os resultados mostram que não é possível encontrar uma mentalidade uniforme, exterior às diferenças de sexo, idade, origem, escolaridade e categoria social. Não se pode, portanto, fazer uso de expressões do género Os Moçambicanos têm estas percepções.
Por outro lado, essa mentalidade não possui a lógica unívoca que inicialmente prevíamos. Por exemplo, estávamos convencidos de que encontraríamos grandes potenciais de etnicidade e que estes potenciais teriam correspondência com fortes potenciais de causalidade metasocial e de aderência aos dois tipos de líderes tradicionais propostos no questionário. Ora, como tivemos ocasião de verificar, essa correspondência não se verificou.
O que se verificou foi o aparecimento de tendências, de potenciais culturais, de lógicas, do perfil de uma mentalidade profundamente moderna, aberta, ambivalente, crítica, mestiça, franqueada ao Outro mas, também, crítica dele, uma mentalidade que se coloca o problema de uma vida melhor, uma mentalidade, enfim, que discute a distribuição da riqueza social.
Assim, verificámos que existe uma clara associação entre percepções sobre racismo e percepções sobre distribuição de riqueza. Para uma larga maioria das pessoas, o racismo não é concebido como uma natureza em si, mas como um fenómeno que depende ao mesmo tempo da educação, da classe social e da fracção de riqueza social que recebemos. "Nota-se mais o racismo nas pessoas que não têm nada no seu país e vêm para cá para tentar sobressair", disse uma estudante do sexo feminino. Os "Indianos", por exemplo, são vistos como racistas não por serem "Indianos", mas especialmente por terem muito dinheiro e/ou por pagarem pouco. "Não pagam bem o negro", como afirmou um vendedor informal na cidade de Maputo. Os atributos que lhes são dados e que parecem ser autónomos, têm a ver, regra geral, com a posse de riqueza. Os "Mulatos" não são vistos como "Mulatos" em si, mas como estando do lado dos que são beneficiados em riqueza social. As pessoas mostram-se regra geral optimistas na possibilidade de evitar o racismo e são reticentes quanto à visão do Outro racializado em termos acabados e primordiais. "Porque em Moçambique existem estrangeiros ricos e cooperam com os pobres (no caso das ONGs)”, disse uma camponesa da cidade da Beira. A prova paradigmática de que o racismo não tem a ver com a cor da pele ou com o estoque genético (o "mundo do sangue"), é a de que "Negros" consideram racistas outros "Negros", justamente porque entendem que enriqueceram e deixaram de pensar nos "seus". E quem são esses "Negros" acusadores? São especialmente os mais afectados pelos preços, pelos salários e pela gestão das terras: camponeses (verificámos isto especialmente no Centro do País). Este um exemplo de que o racismo pode existir sem raça. O que o geral das pessoas defende, afinal, de forma implícita, é que o racismo pode ser combatido como uma redistribuição da riqueza social.
Essa capacidade de pensar o fenómeno racial em termos sociais e de recusar ver povos e "raças" como entidades substantivas preexistindo às relações sociais e, especialmente, a grande disponibilidade para aceitar que a educação pode combater o racismo, encontra esteio e refracta-se permanentemente na visão do Outro étnico.
Na verdade, não são poucas as pessoas que se recusam a ver o "Sul", o "Centro" e o "Norte" como entidades geográficas e sociais ontológicas e, especialmente, a ver o "Sul" estrangeiro às relações sociais e à distribuição da riqueza social. Existe uma grande permeabilidade, uma grande porosidade à visão transfronteiriça, pan-étnica. Com percentagens elevadas no questionário, as pessoas colocam Moçambique acima da "etnia" de origem. Recorde-se a extraordinária aderência que é percepcionalmente dada ao acolhimento de refugiados vindos de países que enfrentam problemas sociais graves, designadamente guerras. Este internacionalismo está bem contra um dos piores perigos da democracia: a defesa intransigente do pequeno mundo comunitário com as suas fronteiras subjectivas fechadas aos outros mundos."
Adaptado de Serra, Carlos (dir), Racismo, etnicidade e poder. Um estudo em cinco cidades de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária, 2000, pp. 80-82.

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