13 setembro 2007

A cultura acústica dos Moçambicanos (7) (continua)

"Em verdade vos digo: em cada língua viaja um horizonte, em cada língua há uma ponte. Não é para juzante dela que caminha, mas para montante " (salmo 677 do "Livro das Entidades Prováveis", ano 5667 da nossa era)
Vou tentar subverter um pouco a forma de ver as coisas nesta série dedicada à tese de Lopes. Vou começar assim:
Já no século XVI várias dezenas dos nossos antepassados falavam português, à sombra do aprendizado evangélico católico nas feitorias e, também, do seu papel de intérpretes nos contactos com os reis e príncipes locais. Esse é um processo que começa na feitoria de Sena a partir de 1505, estende-se pela Ilha de Moçambique a partir de 1507 e prossegue em Tete a partir de 1530 e em Quelimane a partir de 1544. Digamos que é com os servidores de Deus e nas rotas das capulanas, do ouro e do marfim (mais tarde dos escravos), que o Português se instala em Moçambique.
Portanto, a língua portuguesa é bem anterior ao surgimento do Shisena (deixo a grafia a cargo dos puristas), por exemplo, língua híbrida, filha de muitos horizontes culturais, que nasce no vale do Zambeze a partir dos séculos XVII/XVIII, com os exércitos de achicunda (protótipos dos sipaios) dos muzungos de terras e guerras, de origem portuguesa e goesa, que ali se foram instalando e mesticizando, dando origem às dinastias dos Caetano Pereira, dos Cruz, dos Silva, dos Vaz dos Anjos, dos Sousa, etc.
Mais: a língua portuguesa é ainda bem mais antiga - segundo exemplo - do que o Shichangane aqui do Sul, produto oitocentista do imperialismo Nguni proto-sul-africano agindo sobre o proto-Ronga através das impi de Shochangane/Manicusse, Mzila e Ngungunhane/Mundugazi.
O que é a língua portuguesa? É uma língua que chega de caravela no fuzil de pederneira do soldado-mercador, vem embrulhada na Bíblia e converte-se ao sertão africano a partir do Zambeze e da catequese das feitorias-capelas portuguesas. Com a língua portuguesa viajam, década após década, o milho, a mandioca, o feijão, a papaia, o amendoim, a abóbora, o caju, o abacate, o maracujá, o pimento, etc. Digamos que a língua portuguesa é uma língua rizomática, polimorfa, que chega pelo mar e ganha o sabor da savana, uma língua com movimento browniano.
É estrangeira a língua portuguesa? É. É africana a língua portuguesa? É. É possível agora considerar outras facetas dessa língua? É. Mas isso virá mais tarde, tudo a propósito da acusticidade moçambicana defendida por Lopes.
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Atenção: reitero que a qualquer momento posso corrigir algo aqui. Este diário é uma oficina, um recanto de bricolagem. Entretanto, acompanhem a série de L. Kudjeka, com o título "A cratera de babel (1)", iniciada na edição de ontem do "Magazine Independente", pp. 16-17, dedicada igualmente à tese de Lopes.

7 comentários:

Anónimo disse...

Professor,
Nada sei sobre a língua Sena, mas quanto ao shangana creio que está equivocado. Se ler, por exemplo, o antrópologo Henry Junod, verificará que a língua e a cultura daquilo que hoje se designa como shangana são mais antigas que o tempo. Língua nas suas diferentes variantes regionais que só nós os falantes sabemos diferenciar. Não é verdade que essa língua e suas variantes, essa cultura, tenham chegado com Soshangane. O termo "shangane" sim, deriva daquele conquistador Zulu/Nguni. Creio que o termo que, antes de soshangane, designava a língua e a cultura shangane era "Tsonga".

Devo ainda dizer que na corte de Soshangane, Muzila e Ngungunhane não se falava tsonga, shangane ou ronga. Falava-se zulo. Mesmo os mancebos shanganas que eram convocados para o exército falavam esta última língua. O zulo desempenhava, então, o papel que o português passou a desempenhar depois.

O que estou a tentar dizer é que a língua e a cultura que hoje se designam "shangane" são bem mais antigos que a chegada dos portugueses a África.

Carlos Serra disse...

Conheço a obra de Junod, que trabalhou sobre o "tsonga", na (s) variante (s) da época. Não falo do tsonga/ronga, mas do "changane". Aqui fica a sua contribuição, prossigamos o diálogo, se souber de mais gente que possa aprofundar o tema é óptimo. Este local é para isso mesmo, para debate. Obrigado.

Anónimo disse...

O que estou a dizer Professor, é que o Shichangane aqui do Sul, não é produto oitocentista do imperialismo Nguni, como afirma na sua postagem. E que esta afirmação resulta de um lamentável equívoco. Este Shichangana “aqui do sul” já existia antes da chegada de Soshangane. Antes disso a língua era conhecida por shitsonga. Veja, Professor, os trechos que aqui coloco, retirados de uma breve busca através do motor “google”:

“The Tsonga or Xitsonga language is spoken in southern Africa by the Tsonga people, also known as the Shangaan. Tsonga belongs to the Bantu branch of the Niger-Congo languages. Speakers are sometimes called Shangaans, which according to them (Tsongas) is wrong as they use that denominator for Tsongas who live in Mozambique. Most of the Tsongas now live in Giyani, a place in Limpopo province in South Africa”.

“Various dialects of Tsonga are spoken as far north as the Save River in Zimbabwe and as far south as KwaZulu/Natal. While most dialects are mutually intelligible, they do have distinct differences that are geographical as well as based on influence of the colonial era. The most distinct dialects are Luleke (Xiluleke), Gwamba (Gwapa), Changana, Hlave, Kande, N'walungu (Shingwalungu), Xonga, Jonga (Dzonga), Nkuma, Songa, Nhlanganu (Shihlanganu).”

“'Tsonga' is used to describe Changana, Tswa, and Ronga, although it is often used interchangeably with Changana, the most prestigious of the three. All are recognized as languages, although they are inherently intelligible”.

“Tsonga has been characterized by some linguists as a "whistling language" similar to Shona in that it contains certain sounds such as "sw/sv", tsw/tsv", "dzw/dzv", sounds which occur throughout the language”.

Veja especificamente o penúltimo trecho que refere que o termo “Tsonga” é usado para descrever changana, Tswa e Ronga, embora muitas vezes seja sinónimo do Shishangana aqui do sul, apresentado no trecho como a mais prestigiada das três. Mais Professor, existem livros escritos em Shangana, o que se fala aqui no Sul, há mais de 100 anos, coincidindo em alguns casos com a época do império Nguni. O facto de a escrita do Shangana ser contemporânea do império Nguni reforça, Professor, a minha hipótese de que esta língua, que então se designava Tsonga, ser anterior, e de longe, ao advento de tal império.

O seu colega, o Professor Bento Sitoe, pode lhe fornecer mais subsídios sobre esta matéria.

Carlos Serra disse...

Pronto, aqui fica o seu comentário, a sua correcção, o seu empenho meritório. Obrigado!

Carlos Serra disse...

Oiça: está absolutamente provado que o Shangaan (sempre o problema da grafia...)nada tem ver com o Mfecane e com a expansão territorial e linguística nguni em Moçambique?

Anónimo disse...

Estou absolutamente seguro Professor. A língua e a cultura Shangana já existiam antes do Mfecane a da expansão linguística Nguni em Moçambique. O que muitas vezes provoca equívocos é precisamente o termo "vaShangana" que significa povo do Soshangane. Ou súbditos de Sochangana. Só que isto não significa que a língua e a cultura daqueles povos tenham sido inventadas por Soshangane. Parte significativa dos povos do Sul do Save em Moçambique já falavam a língua e tinham seus hábitos culturais desde tempos longínquos. Só que essa língua e cultura se designavam, então, por “Shitsonga”

A tradição oral do sul do Save diz que quem salvou e preservou a língua e a cultura Shangana foram as mulheres. Ora, só se preserva o que já existia. Como é que essa preservação tomou forma?

O problema consistia em que a língua dominante era o Zulo. Os homens (Tsongas), desde o momento em que ultrapassassem a fase da puberdade, eram arregimentados nas fileiras do exército. Onde ficavam até quase à velhice, já que a principal ocupação daqueles cavalheiros era a guerra. Ora, a língua da caserna e da corte era o Zulo. Os homens tendiam a falar essencialmente esta língua para se assimilarem a serem aceites pelo sistema dominante. Tudo isto em prejuízo do Tsonga. O que salvou a preservou esta língua foi a persistência das mulheres em fala-la e em ensina-la aos seus filhos. Que no caso de serem varões só deixavam de a usar no quotidiano quando entravam para o exército. Mas ao menos já a conheciam!

O que é pena é que estas coisas não se ensinem na história do nosso país e as pessoas que as conhecem estão a desaparecer. Não me admirará que daqui a uns 20 anos vingue sem problematização a hipótese que o Professor aqui levanta. A verdadeira história dos nossos povos (Rongas, Shanganas, Tswas, Ndaus, Senas, Nhungwes, Lomué, Chuabo, Macua, Nyanjas, Yaos e outros) não está a ser estudada e nem a ser escrita. É realmente uma pena.

A minha geração (ando pelos 44 anos) é a última que teve a oportunidade de escutar os "tikaringana wa karingana", momentos em que à volta da fogueira, todas estas coisas eram passadas de geração em geração. E eu já não conto os tikaringana wa karingana aos meus filhos. Deixariam de ver a novela o que seria inaceitável para eles e, talvez, para mim também.

Carlos Serra disse...

Força-me a pensar no que escrever. Força-me a pensar nas mulheres enquanto veículo da preservação da língua. Continuo com dúvidas, não temos a genealogia "política" das chamadas línguas banto, não temos ainda a cartografia da história monárquica expansionista nguni (claro que não esqueço os trabalhos de gerhard Liesegang e de outros). Lamento não ser linguista. E lamento não me pôr em campo a fazer algo parecido com o que Pierre Bourdieu fez com o estudo "político" das línguas. Obrigado, escreva e conteste sempre. Abraço.