Os atletas da síndrome da mão estrangeira

A síndrome da mão estranha ou "estrangeira" (alien hand syndrome) é uma singular doença que faz com que uma das mãos da vítima pareça ganhar vida própria. O problema atinge principalmente pessoas com lesões no cérebro ou que passaram por cirurgias aí. Então, o doente não presta atenção à mão libertina. Esta torna-se como que independente, comandada prevertidamente pelo cérebro malicioso. Mas nada sabe disso, pobre mão acéfala. Não sabe o que faz, mas faz o que o doente cérebro lhe manda fazer. Mão andrógina, mão terrível, mão viral!Estão logo a ver os complicados e sonambulescos problemas que disso podem advir.
Aqui, neste diário, dei a conhecer alguns textos que mostram de que maneira as nossas florestas estão a ser realmente depradadas.
Ora, imediatamente, aqui e em vários jornais, vários praticantes das teorias complotárias e da mão estrangeira deram a entender, de forma indirecta, subtil, que mãos havia, entre as quais certamente a minha, ao serviço dos países ocidentais contra os chineses. E isso justamente quando o presidente chinês estava para chegar, como chegou.
E depois surgiu a carta aberta do Marcelo Mosse. Claro, nova onda de teorias da mão estrangeira. A bola de neve ampliou os efeitos. Vejam lá o que o Marcelo fez: escrever ao presidente chinês! Que coisa, que deselegância desabrida! Que ruideira desnecessária!
Então, eu e o Marcelo temos mãos preversamente fora do nosso controlo, porque ao serviço de ignóbeis interesses anti-chineses. Nós não somos: fazem-nos ser. Que desgraça!
O meu malandro cérebro anti-chinês fez com que eu não percebesse o que acontecia à minha mão. A minha mão tornou-se sonâmbula, teleguiada por obscuros interesses extra-moçambicanos e anti-chineses.
O fundamental não estava nem está, para vários dos atletas da mão estrangeira, no que realmente se está a passar no país, com a nossa conivência. E, de resto, acrescentam beatamente os atletas, não há também e não havia antes interesses não chineses? O problema, para eles, é que existe uma mão anti-chinesa. Não há uma campanha ocidental em curso contra os Chineses? Então, já viram como tudo se explica? Se há uma campanha, internamente existem os campanhados, ao serviço dos promotores da campanha. São simples mãos. Melhor ainda: pés da cabeça anti-chinesa. E ainda por cima agora que a China perdoou a nossa dívida! Que malignos são os campanhados! Agora a posição é de genuflexão, de bem-agradecidos. O que interessam as nossas florestas afinal?
Mais: se há problema, propõem certos praticantes da mão estrangeira, devemos, antes, melhorar as instituições do Estado e deixarmo-nos de falsos ruídos e de inglórias denúncias. Somos quem decide, não os Chineses. O fundamental é sermos Ghandis de forma abnegada, doces praticantes de Zen despidos das armas de denúncia "fácil", lubrificando a máquina (politicamente asséptica, assim se pensa) de governar. Precisamos agir assisadamente, chinêsmente afinal.
Moçambicanidade não significa denúncia, busca de culpados. Moçambicanidade significa estar calado. Devemos ter a pacífica mentalidade ar-condicionada.
Moçambicano é botanicamente pacífico: só se agita se for comandado do exterior.
Estamos num país onde parece ser regra (e talvez isso esteja a acontecer cada vez mais) estabelecermos a tese de que não pensamos, de que somos unicamente um ariete comandado por cérebros externos. Ou então, quando defendemos que, afinal, pensamos, apenas queremos dizer que queremos que os outros pensem como nós pensamos.
Há greve? É a mão estrangeira em acção. Critica-se o município de Maputo porque não trabalha bem? É mão estrangeira em acção. A Renamo é belicosa? É a mão estrangeira em acção, a memória retro-alimentada dos serviços secretos rodesianos e sul-africanos. A Frelimo do princípio dos anos 60 tinha uma certa postura política que depois mudou? Foi a mão estrangeira comandada de Washington primeiro, da URSS depois. O académico moçambicano José Coutume critica a Frelimo? É a mão estrangeira da estrangeira universidade onde ele lecciona. A Frelimo fez uma revolução pós-1975? Efeitos claros da mão chinesa soviética, cubana, etc. Existe a marrabenta? Ela é sul-africana, mão sul-africana obviamente. Este diário falou da depredação das florestas? Claro efeito da mão estrangeira ocidental.
E assim nos desviamos da pilhagem das nossas florestas para o conflito sino-ocidental.
Enfim, no que me concerne, certamente sofro ainda de uma segunda síndrome: o de Alice no país das maravilhas, pois coloco aqui florestais textos nos quais as coisas são desproporcionalmente vistas, como que numa "viagem" provocada por LSD.