17 junho 2008

Pais hipotecam filhas em Chemba

Na Página da Mulher do “Notícias”: "O abuso sexual de raparigas é alarmante no distrito de Chemba, a norte de Sofala, segundo concluiu um estudo recente realizado pela Associação Projecto de Vidas para Crianças e Jovens (PROVIDA). De acordo com Ludjero Cândido, coordenador provincial, um levantamento feito sobre a situação apurou que existem pais que chegam mesmo a hipotecar as suas filhas menores devido à pobreza, enquanto outros o fazem como meio de pagamento de dívidas, uma acção que localmente é conhecida por “kuphatira” ."

5 comentários:

Egidio Vaz disse...

Boa tarde Professor.

Decidi escrever-lhe este artigo para comentar acerca de uma peça por si postada dando conta da alegada venda/hipoteca de crianças no Distrito de Chemba.

Na verdade, discursos genocidas como estes são os que mais abundam no país, revelando a magnitude da ignorância que reina entre os que de boas intenções se outorgam, chegando a chamar para si, o direito de escangalhar a cultura dos povos, antes de primeiro compreendê-las.
Compreender a economia política de uma determinada situação, região, povoação ou mesmo cultura é próprio dos que estão preocupados em ajudar. Porém, não me parece que seja a intenção do senhor Ludjero e sua PROVIDA.

Neste pequeno texto, tentarei explicar o significado do kuphatira (assegurar, em português) seus objectivos e suas implicações.

Ku-phatira significa assegurar em português. Trata-se de uma prática secular e de boa fé e intenções, entre os Sena da Bacia do Vale do Zambeze.
Ku-phatira é uma versão europeia menos rigorosa de casamentos por conveniência, ou, a inversão do sistema de castas da Índia. Visa em última instância salvaguardar valores e interesses comuns partilhados dentro de uma comunidade bem como prevenção da intromissão de agentes perversos e ínvios dentro de uma determinada comunidade através do casamento – daí a razão da cultura Sena serem muito aversos ao casamentos inter étnicos, apesar de nos últimos dias tender a redução, devido em parte, ao cada vez movimento de pessoas bem como abalos e influências que as culturas estão a ter. Ela está eivada de uma visão mais comunitária/colectiva do que individual/egoísta. Norteia-se por uma visão progressista, sempre com vista a alcançar um bem-estar social e económico partilhado e sustentável bem como uma mobilidade social previsível. Não busca lucro nem proveito interesseiro mas sim um clima para trabalho, especialização laboral e diversificação de fontes de rendimento.

Quando duas famílias conhecidas e amigas decidem sedimentar as suas relações e, havendo de ambos os lados a necessidade de constituírem uma relação de familiaridade, elas entram numa acordo onde cada uma das partes se compromete em casar o/a sua/seu filho/a. Normalmente a iniciativa vem dos pais do filho mas os da filha têm nisso, a última palavra a dizer. O ku-phatira concretiza-se mediante a declaração de intenções por parte dos pais do noivo, seguindo-se a entrega de bens de valor, ou mesmo de dinheiro. Esses bens e esse dinheiro serve única e exclusivamente para a educação da futura noiva; se forem bois, cabritos ou mesmo machambas, também são considerados pertenças da futura noiva. Em momento algum a entrega desses bens visa saldar dívidas. Melhor, no acto da entrega, as famílias acordam que o gesto não significa nenhuma venda muito menos hipoteca da filha mas sim uma manifestação da vontade de estreitar as relações de familiaridade expressa através da partilha dos bens que doravante passam a servir os interesses da noiva desejada. Por reconhecer a menoridade da noiva, ao noivo é lhe liminarmente proibido manter relações sexuais com esta até que atinja a idade núbil. Porém admite-se que faça alguns trabalhos de casa para ele, como sejam cozinhar, buscar lenha, lavar a roupa – actos que já fazem parte do processo de aprendizagem e socialização dentre as mulheres.

O casamento efectiva-se quando a noiva atinge a maioridade. Porém, há um princípio que é salvaguardado: o da possibilidade da renúncia, baseado nos seguintes termos ou condições:

a) O mau comportamento do presumível noivo – normalmente a diferença de idades entre o noivo e a noiva tem sido de 10-15 anos, não se admitindo assim aos casados; ou seja, só faz ku-phatira o jovem solteiro (que normalmente não deverá ter mais de 25 anos) e que demonstre bom comportamento antes e depois – aqui inclui-se sucesso no trabalho, ou seja, pelo menos tem que ter provado que sabe construir a sua própria casa, sabe pescar ou trabalhar o campo, e já agora, que seja um bom negociante ou mesmo professor ou enfermeiro, principais profissões que abundam nessas regiões. Aos polícias e militares são lhes negado o direito de ku-phatira, devido as representações que o povo deles nutre: agressivos, imprevisíveis e grosseiros. Não admire porém quem seja muito difícil à estes profissionais ku-phatira. Porém podem casar. Aos já casados mas que queiram somar mais uma são lhes negado o direito. A estes são lhes permitido que vão buscar seja mulheres solteiras, divorciadas ou viúvas.

b) Quando, até a idade adulta, a noiva mudar de ideias, seja por ter conhecido outro alguém, seja pelos mesmos motivos imputáveis ao homem e já referenciados na alínea anterior. Nestes casos, o pai da noiva assume as responsabilidades. Porém, sabe-se que quem na prática os assume é o novo homem que vê o valor do lobolo acrescido, de modo a fazer face à dívida (que normalmente se considera de gratidão). Neste caso, o noivo deve dizer quais os bens que quer ver de volta. Principalmente tem sido machambas ou gado, ou qualquer outro bem duradoiro e nada mais. Não é prática dos Sena cobrar valores chorudos para o lobolo ou qualquer outra cerimónia matrimonial. Parte-se do princípio que homem ou mulher não se vende. E que as pessoas se juntam por amor. Pelo que os pais da noiva sempre pedem aquilo que podem pagar, caso o casamento se dissolva por culpa desta. Muitas vezes tem sido as três moedas mais pequenas mais a festa, onde todos contribuem (vide aqui, Felizardo Cipire, Usos e costumes tradicionais moçambicanos...ARPAC, 199...?)

c) Quando um dos noivos morre. Neste caso, não se cobra nem outra mulher, muito menos a fortuna (mfuma, em ci-sena) doada.

É verdade que os moldes foram se alterando a medida do tempo mas garanto-lhe que a essência se mantêm. E o respeito pelo menores também .

Posto isto, cabe-me questionar o seguinte:

1. Com a revolução sexual que assistimos; com a despudorização do sexo patente nas mensagens e nos programas de combate à sida; com o ‘’vamos falar abertamente sobre o sexo’’ apregoados por organizações do tipo PROVIDA, com o ‘vamos quebrar tabús’ frequentemente atribuído as práticas sócio culturais, pergunto eu, quem tem tempo para compreender o ku-phatira? Quem tem tempo para deter os intrusos que, a pretexto de ku-phatira, procuram desfrutar de mais mulheres, fazendo valer-se da sua musculatura político-financeira?

Voltando a notícias, aqui vão algumas perguntas, parágrafo por parágrafo:

‘De acordo com Ludjero Cândido, coordenador provincial, um levantamento feito sobre a situação apurou que existem pais que chegam mesmo a hipotecar as suas filhas menores devido à pobreza, enquanto outros o fazem como meio de pagamento de dívidas, uma acção que localmente é conhecida por “kuphatira’
a) Hipotecar uma pessoa é o mesmo que pô-la à venda. E em Moçambique, tráfico de pessoas é crime, logo, assunto de interesse do Sistema de administração de Justiça do país. Terá a PROVIDA metido queixa a Polícia local? Se o fez, qual foi a resposta tida?
‘A hipoteca, ou seja, “kuphatira”, consiste na identificação da rapariga por parte dos pais do rapaz e posterior “reserva” para fins matrimoniais ou mesmo, segundo a nossa fonte, os próprios progenitores das petizes voluntariam-se em entregá-las quando se vêem apertados devido à pobreza ou dívida’.
b) Na verdade o período que vai entre a dita hipoteca até o casamento tem sido não mais de 5 anos, se o processo for bem encaminhado. Por isso, em condições normais, esse tempo tem sido de preparação do noivo. Dentre os que mais recorrem à ku-phatira, encontram-se os que vão à Beira, ou seja, todos jovens que tentam buscar uma vida melhor indo a cidade (de preferência a cidade da Beira, Nhamatanda ou qualquer outra ao longo do Corredor da Beira – levando tudo o genérico nome de Bera, isso mesmo Bera, querendo ser fiel à sotaque local) ou os que migram ou fazem trabalho fora da sua comunidade.

Importa salvaguardar que nos dias que correm o jovem precisa de esgrimir argumentos convincentes para ku-phatira alguém. A comunidade normalmente pergunta o porquê de até a data o jovem não tem mulher. E qual a diferença que faria se casasse outra pessoa e deixasse a criança em paz. Note que o Senhor Ludjero não precisou de fazer essas questões. Apenas viu e voltou a correr para denunciar no jornal.

“Realmente encontramos uma situação lamentável em relação ao abuso sexual da rapariga, fundamentalmente a rapariga estudante uma situação que se vem registando em quase todos os povoados de Chemba, pois existem pais que entregam as suas filhas de 10/12 anos a homens ou rapazes para se aliviarem de dívidas ou minimizarem o sofrimento” – referiu.
c) Sim, em Chemba como em qualquer outra parte os homens abusam em grande medida os menores. Ora, isso não leva a dizer que em Chemba o abuso de menores é praticado pelos que ku-phatiram. Antes pelo contrário. Através de ku-phatira, o controlo sobre a menor é maior e permite que pelo menos ela atinja a maioridade. Uma das perguntas que o Senhor Ludjero tinha que fazer era: como são socialmente punidos os abusadores de menores em Chemba? A resposta daí adveniente seria muito interessante!

Com vista a minimizar este tipo de abuso sexual à rapariga, a PROVIDA pretende levar a efeito uma campanha de divulgação dos direitos da criança e da rapariga, em particular, incluindo a formação de activistas sobre HIV/SIDA e saúde sexual reprodutiva para adolescentes
d) Veja Professor o remédio que se aplica ao problema. Obviamente, uma prescrição errada à um problema também mal diagnosticado. Qual é o grupo alvo destas campanhas? Por quanto tempo? Em que medida o conhecimento pode condicionar determinadas atitudes baseadas numa prática cultural?

“Estamos à procura de parceiros para financiarem esta campanha, pois a situação atenta contra os Direitos da Criança e, de forma particular, queremos sensibilizar as comunidades de modo a deixarem esta prática de “kuphatira” – apontou
e) Eis o objectivo final do Senhor Ludjero. Está a procura de dinheiro.

Carlos Serra disse...

Muito obrigado, Egídio!

umBhalane disse...

Parabéns e obrigado, Sr. Egídio Vaz.

Unknown disse...

Prazer Historiador Egídio Vaz! de fácto há muita coisa que vem ao público de forma redicularizada por falta de ciência em algumas devulgações.

Dentre vários as pectos que aborda sobre "alegada venda/hipoteca de crianças no Distrito de Chemba" gostaria de secundar a parte que fala de restetuição dos bem do noivo rejeitado, dizer que no sul chama-se "ku khupa a ti Mpodweni" porque se isso não acontecer a futura descendência vai pertencer a família do rejeitado.

Mas também tenho acompanhado que há famílias que tiveram que ir deixar ou "hipotecar" uma rapariga porque o Pai ou a Mãe levou remédio de um currandeiro e não pagou. portanto, essa rapariga passa a servir de um bem para o efeito de pagamento se não uma cabeça de vaca. mas mesmo assim não significa acasalar esta rapariga com alguém desta família mesmo porque quém vier a se intereçar e querer casar com esta rapariga terá de o fazer obedecendo custumes da família onde actualmente pertence a rapariga.

Para dizer que alguns aspectos da nossa cultura chocam se com a legalidade! lembra se do caso das duas senhoras encarcerradas acusadas de ter enterrado um nado morto sem o consentimento da mãe?

Eu ainda Criança em Mandlakaze Machecahomo, minha mãe teve um nado morto, o procedimento foi o mesmo mas minha mãe e minha família como pertencia a este custume, as "Massungakates" anciãs não foram vítimas de nenhuma perseguição policial nenhum "Direito descontextualizado".

Desculpa me por tantos ditos mas o importante era.
Obrigado Egídio Vaz

Bive disse...

De facto, é muito interessante a análise que o Sr. Egidio faz sobre o assunto. No entanto,e mesmo reconhecendo que trata-se de uma prática cultural, devemos sim fazer alguma coisa no sentido de mudar, de forma sábia, alguns hábitos que achamos serem extemporâneos. Estou-me a referir por exemplo, que era cultura ter 10 a 20 filhos, casar muitas mulheres, etc, mas esta prática já não se verifica com a nova geracão.

Posso perguntar ao Sr Egidio quantos irmãos tem? Certamente que pode responder que são 8 por ai. E perguntar a ele quantos filhos terá? Talvez dirá 2 a 4. Porquê? Não quer preservar a cultura de ter muitos filhos?

Seriamente falando, temos que fazer alguma coisa para mudar alguns hábitos culturais que ja nao ajudam para os novos desafios: educação convencional para todos, combate a pobreza absoluta, etc.

Nao olhemos simplesmente no dinheiro. Há muito dinheiro que ate nada se faz com ele senão para financiar guerras. Olhemos no valor que a acção trará. De facto o que temos que fazer é elaborar bons programas que de forma gradual e interessante, possam operar mudanças nas populações.É por isso que estudamos. Muito Obrigado.