19 abril 2006

Sofrer e crer: o destino dos deserdados

Com tanta pobreza multilateral existente no país, lá onde a insegurança é permanente, onde cada amanhã é uma incerteza, não surpreende que as pessoas tenham tanta fé em forças que os transcendem. Os curandeiros e os pastores das igrejas tornaram-se os seus intelectuais orgânicos, aqueles que contribuem para a hegemonia do grupo social dominante através de um consenso plural (calibrado pelo medo, pelo amortecimento que a contra-sociedade representa e pela promessa de um além diferente), que lhes pedem que se conformem com as relações sociais existentes para que, um dia, espíritos e Deus os recebam e os redignifiquem.

Pretender que não tenham ilusões é exigir que renunciem a uma situação que delas carece.

A condição social daqueles para quem cada dia é um ponto de interrogação torna-os prisioneiros irremediáveis de um duplo constrangimento: por um lado, a vulnerabilidade perante os fenómenos da natureza e a insegurança do seu modo de vida catapulta-os para a interpretação emocional e antropomórfica da vida; por outro, esta visão reforça a vulnerabilidade e a insegurança.

É isso que permite a extraordinária ambivalência das igrejas do tipo Zione ou IURD.

Por um lado, as milhares de pessoas, regra geral de origem humilde, que acorrem aos cultos esperando que Deus os ajude a libertarem-se dos flagelos que as perturbam, criam novos espaços identitários, encontram nas igrejas um sentido para a vida, nelas recebem solidariedade, aí é-lhes assegurada uma recompensa celestial para os males terrenos caso creiam sem reservas em Deus.

Mas no preciso momento em que isso acontece, ocorre a evicção completa do projecto de modificação real das condições de vida.

Com efeito, ao aceitarem que todos os males são obra dos "maus espíritos" (Mazione) ou do "diabo" (IURD), os actores acabam por ver transferida (com a sua adesão, afinal) para entidades sobre-humanas a responsabilidade social na génese da miséria e da violência. Perdido o sentido crítico, trocado que é pelo sentido das crenças, eles parecem evacuar o desafio humano de uma transformação social genuína.

Aqui temos, afinal, um exercício de despersonalização trágica. Despersonalização tão mais trágica quanto o caminho para o céu tem de passar, como na IURD, pela exigência constante de dízimos em meticais ou em dólares.

Acresce que as ameaças sistematicamente feitas aos crentes no sentido de que o inferno os espera caso caso não entreguem o dízimo, só pode concorrer para ampliar a cultura de medo e de abdicação herdada dos anos de guerra civil.

1 comentário:

Carlos Serra disse...

Patrício: a precaução que aqui deixa é excelente, eu devo-a ter em conta, qualquer um de nós a deve ser em conta enquanto sociólogos. Sim, bem sei, os políticos vão às bruxas, aos curandeiros, aos cartomantes, etc. Também sei do ressurgimento espantoso da astrologia hoje. Ao fim e ao cabo, todos têm um deus. Entretanto, não está ainda feita no país a sociologia das crenças religiosas e, em particular, dos perfis sociais dos crentes. Seria, por exemplo, interessante saber quanto tempo, objectivo e, bem mais difícil se não impossível de apurar, subjectivo, as pessoas de diferentes categorias sociais dedicam aos espaços físicos das crenças. O problema talvez esteja menos na globalidade ou na generalidade das crenças (digamos, “ricos” e “pobres”), mas no tempo e na densidade dedicados à crença religiosa em suas diferentes formas. Tanto quanto posso perceber dos trabalhos dos meus estudantes, os frequentadores das igrejas Zione, por exemplo, passam lá uma boa parte do tempo da sua vida. Mas tenho dúvidas sobre se os “ricos” e os “medianamente ricos” passam muito tempo nas igrejas, nos rituais, etc. Claro, teremos de juntar às crenças em deus as crenças nos espíritos e, aqui também, devemos ter em contra vários fenómenos. Entretanto, se um dia puder, leia de Eliane Contini, o belo livro com o título “Um psiquiatra na favela” (eu tenho a edição francesa). Um trabalho excelente para compreendermos a mentalidade dos deserdados. E a terminar: o Patrício acha mesmo que as crenças dos deserdados que frequentam as igrejas Zione são do mesmo tipo e da mesma espessura que as dos habitantes da Polana-Cimento e da Sommerchield que frequentam digamos a Igreja da Polana? Talvez a pergunta seja ociosa, mas, afinal, em sociologia não há perguntas ociosas, apenas há perguntas mal formuladas.