"(...) a força do fogo é tanto mais forte quanto mais comprimida e apertada estiver" ( Jean-Pierre Fabre, 1636, citado em Bachelard, Gaston, A psicanálise do fogo. Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 8)
I
I
Ante a crença num progresso racionalizador e domesticador dos instintos que poucos desejam pôr em causa, aí compreendido o do Estado iluminista em sua posse exclusiva da violência preventiva e punidora, é difícil não irracionalizar o comportamento linchatório, não o condenar violentamente, seja ao nível dos operadores do direito, seja ao nível de qualquer um de nós. Mesmo os moradores dos bairros periféricos condenam-no (mas com a salvaguarda de que também eles são diariamente linchados de múltiplas maneiras). Estamos, assim, confrontados com o velho dualismo do bem e do mal, do céu e do inferno, do racional e do irracional, do moderno e do arcaico, do são e do doente. Em cada um de nós habita um linchador colérico e irrazoável caso nos roubem algo ou nos sintamos demasiado em cima da lâmina. Regra geral a moral do céu muda de vida e de atitude no território do inferno. Os linchamentos não têm a ver com a pobreza em si, com a privação de satisfação das necessidades fundamentais em si, com a ausência da polícia ou dos aparelhos formais da justiça em si, mas com a exposição permanente à exclusão, à multilateralidade dessa exposição. É num conjunto poliédrico e rizomático de factores que devemos tentar compreender os sismos sociais, aí compreendidos os linchamentos. E os sismos podem surgir apenas pela activação localizada e súbita de um dos factores, o qual repercute, depois, em cascata, sobre os outros.
II
Quando o crime é de natureza individual, é atribuído à patologia individual. Quando é da ordem das multidões, o crime é imputado à patologia colectiva, das multidões irracionais. E aqui entra em cena a ciência para definir os padrões de irracionalização e de desvio da ordem estabelecida. O pressuposto é, sempre, o de uma sociedade que escolheu seguir historicamente uma via de normas e moral. Se isso não acontece, é porque algo regrediu, algo regressou: a barbárie humana. Nasce, então, o discurso moral, condenatório. A produção do discurso condenatório é tão importante quanto a dos linchamentos.
III
Mas regresso aos linchamentos, que são, afinal, uma outra modalidade do que, neste diário, amiúde, tenho chamado sismos sociais.
Escreveu um dia Gaston Bachelard que se o que se modifica lentamente explica-se pela vida, o que se modifica depressa explica-se pelo fogo.
Ora, essa bela visão permite, quanto a mim, dar visibilidade paradigmática a todo um processo acumulativo de problemas (a vida nos bairros periféricos de Maputo, mas também da Beira ou do Chimoio), problemas que um dia transbordam porque demasiado comprimidos entre as margens da vida e, subitamente, nas possibilidades abertas de uma bifurcação, dão origem a um clímax brutal, dinamogénico, final (os linchamentos pelo fogo). Nem em todas as cidades o fenómeno ocorre. Ocorre em algumas, havendo aqui que multiplicar os sistemas analíticos.
Com efeito, o quadro social que apresentei mostra uma saturação social grande, uma angústia grande, uma impotência grande. Os moradores dos bairros periféricos sentiram-se e sentem-se como se poluídos pelo mal que os corrói, pela insegurança que os atemoriza.
Lutando em meio a um mar de problemas de sobrevivência, eles chegaram e chegam a um limite a partir do qual não há mais retorno. Não foi nem é a insegurança ou a falta de protecção em si que esteve e está na origem dos linchamentos e do sismo social de 5 de Fevereiro, mas, antes, a multiplicidade dos problemas sociais de sobrevivência, sobrevivência material e moral, para usar dois termos gastos pelo uso. É esta multiplicidade, essa multipolaridade de problemas sociais que percute, ampliando-a desmesuradamente, a consciência aguda da insegurança que tem na protecção da vida e dos haveres um dos seus eixos basilares.
Eclipsada a razão, libertada a emoção, cidadãos pacíficos tornaram e tornam-se, repentinamente, vozes de uma natureza em fúria. Tornam-se maus não porque sejam maus em si, mas porque - assim sentem - a vida é má e maus os torna. Decidiram e decidem fazer justiça por suas próprias mãos, decidiram e decidem ignorar os caminhos normais da lei, decidiram que poderiam tentar ter paz da forma mais brutal que pode haver: tirar a vida pelo espancamento primeiro, pelo fogo depois, de forma cruel, a um ser humano, culpado ou inocente. E, depois, consumado o acto, as pessoas sentem-se felizes porque julgam ter evacuado o mal, sejam adultos, sejam crianças, sejam homens, sejam mulheres. A partilha da catarse é colectiva, não tem nem idade nem sexo. Daí, regra geral, a assunção colectiva do acto linchatório sacrificial, a cultura do silêncio que impera localmente quando queremos saber quem foram os linchadores.
O vazio institucional que as pessoas sentem é tão grande, que parece terem perdido a confiança total na polícia. "Aqui não é coisa de partidos, aqui todos nós sentimos. Bairros estão cheios de armas, mesmo de polícias"- disseram-me moradores por mim entrevistados em Maputo.
Ora, essa bela visão permite, quanto a mim, dar visibilidade paradigmática a todo um processo acumulativo de problemas (a vida nos bairros periféricos de Maputo, mas também da Beira ou do Chimoio), problemas que um dia transbordam porque demasiado comprimidos entre as margens da vida e, subitamente, nas possibilidades abertas de uma bifurcação, dão origem a um clímax brutal, dinamogénico, final (os linchamentos pelo fogo). Nem em todas as cidades o fenómeno ocorre. Ocorre em algumas, havendo aqui que multiplicar os sistemas analíticos.
Com efeito, o quadro social que apresentei mostra uma saturação social grande, uma angústia grande, uma impotência grande. Os moradores dos bairros periféricos sentiram-se e sentem-se como se poluídos pelo mal que os corrói, pela insegurança que os atemoriza.
Lutando em meio a um mar de problemas de sobrevivência, eles chegaram e chegam a um limite a partir do qual não há mais retorno. Não foi nem é a insegurança ou a falta de protecção em si que esteve e está na origem dos linchamentos e do sismo social de 5 de Fevereiro, mas, antes, a multiplicidade dos problemas sociais de sobrevivência, sobrevivência material e moral, para usar dois termos gastos pelo uso. É esta multiplicidade, essa multipolaridade de problemas sociais que percute, ampliando-a desmesuradamente, a consciência aguda da insegurança que tem na protecção da vida e dos haveres um dos seus eixos basilares.
Eclipsada a razão, libertada a emoção, cidadãos pacíficos tornaram e tornam-se, repentinamente, vozes de uma natureza em fúria. Tornam-se maus não porque sejam maus em si, mas porque - assim sentem - a vida é má e maus os torna. Decidiram e decidem fazer justiça por suas próprias mãos, decidiram e decidem ignorar os caminhos normais da lei, decidiram que poderiam tentar ter paz da forma mais brutal que pode haver: tirar a vida pelo espancamento primeiro, pelo fogo depois, de forma cruel, a um ser humano, culpado ou inocente. E, depois, consumado o acto, as pessoas sentem-se felizes porque julgam ter evacuado o mal, sejam adultos, sejam crianças, sejam homens, sejam mulheres. A partilha da catarse é colectiva, não tem nem idade nem sexo. Daí, regra geral, a assunção colectiva do acto linchatório sacrificial, a cultura do silêncio que impera localmente quando queremos saber quem foram os linchadores.
O vazio institucional que as pessoas sentem é tão grande, que parece terem perdido a confiança total na polícia. "Aqui não é coisa de partidos, aqui todos nós sentimos. Bairros estão cheios de armas, mesmo de polícias"- disseram-me moradores por mim entrevistados em Maputo.
Pode acontecer - se não acontece já - que se tenham formado grupos autónomos de linchadores, com as suas regras próprias, à margem dos aparelhos de justiça formais. Pelo menos na Beira há indicações, publicamente reportadas pela imprensa, de que moradores de vários bairros periféricos decidiram privatizar a justiça punidora.
Uma última questão, neste número: por que razão os linchamentos não ocorrem na grande Maputo, na zona central? Ou nas zonas centrais da Beira ou de Chimoio? Ou nas zonas centrais de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, no Brasil? Posso, em outros, sugerir os seguintes quatro factores:
1. Iluminação, segurança estatal mais sistemática e segurança privada.
2. Estrutura urbanística, com os seus prédios, o seu tráfego rodoviário e o seu convite a uma vida mais individualizada e bem mais e melhor gradeada.
3. Conhecimento colectivo com possibilidades de irradiação imediata é, aí, claramente inferior ao conhecimento social quase quinestésico que se tem nos bairros periféricos.
4. Maior facilidade de acesso à instâncias formais de prevenção e resolução de conflitos.
1. Iluminação, segurança estatal mais sistemática e segurança privada.
2. Estrutura urbanística, com os seus prédios, o seu tráfego rodoviário e o seu convite a uma vida mais individualizada e bem mais e melhor gradeada.
3. Conhecimento colectivo com possibilidades de irradiação imediata é, aí, claramente inferior ao conhecimento social quase quinestésico que se tem nos bairros periféricos.
4. Maior facilidade de acesso à instâncias formais de prevenção e resolução de conflitos.
Agora, torna-se indispensável demorar-me um pouco na figura do bode expiatório, o que farei no próximo número.
2 comentários:
professor excelente exposicao e narracao da vida de alguns bairro perifericos de maputo, quica dos grandes centros urbanos de mocambique.
Obrigado.
Enviar um comentário