02 março 2008

Linchamentos, eclipse do social e bodes expiatórios (8) (prossegue)

"(...) a força do fogo é tanto mais forte quanto mais comprimida e apertada estiver" ( Jean-Pierre Fabre, 1636, citado em Bachelard, Gaston, A psicanálise do fogo. Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 8)
Em todo o ritual sacrificial linchatório, o bode expiatório é uma figura central.
Nos relatos feitos pela imprensa, invariavelmente post mortem, aparece com regularidade a indicação de que o linchado é um meliante conhecido. Mas não menos vezes aparece a indicação de que o linchado não é conhecido. E existem indicadores de que há linchados, poucos ou muitos (creio que jamais poderemos obter informação fiável a esse respeito) que são inocentes.
Mas o problema a reter aqui é que pouco importa, em situação de crise social, que o linchado seja efectivamente culpado de algo. Ou melhor escrito: basta que ele seja culpado de ser furtivo, dúbio, de surgir à noite nos bairros, de exibir características vitimárias evidentes, indicadores de anormalidade, de evicção do normal, características estranhas ou assim consideradas.
Um quadro sintomatológico fascinante tem sido apresentado por relatos de imputação causal feitos no Bairro T3 da Matola.
Assim, em Agosto de 2006, residentes dos bairro T3 na Matola chamaram curandeiros para descobrirem os assassinos que supostamente aterrorizavam o bairro, face à crença na ineficiência da polícia. Aos curandeiros foi dado um prazo de 15 dias para encontrarem uma solução e revelaram a identidade dos criminosos. O dedo acusador foi apontado aos estrangeiros do Zimbabwe e dos Grandes Lagos localmente residente, capazes, segundo residentes de T3, de se transformarem em gatos, ratos e cobras para violarem mulheres na calada da noite e matarem cidadãos com o fito de lhes extraírem o sangue para operações mágicas.
Em Novembro do ano passado, uma cobra que se acreditou ser perigosa e feiticeiramente comandada, foi morta por habitantes do Bairro Singathela, também no município da Matola, depois que - fez-se crença - fôra abandonada pelo dono. Junto da cobra estava uma tigela verde, um pano preto e uma pasta, indicadores de provável feitiçaria. O rumor do perigo correu espaços e gente, chapistas transportaram e espalham a notícia. O Sr. Aníbal Menete, por exemplo, acreditou que há uma relação com quem vem de fora, enquanto uma dona de casa disse que o dono da cobra perdera a capacidade financeira de a sustentar.
Por outro lado, no segundo número desta série mostrei o depoimento de uma moradora do Bairro Luís Cabral que ligou os meliantes do bairro ao cemitério local onde asseverou habitarem.
Finalmente, num relato feito pela semanário "Magazine Independente" e igualmente exibido no referido segundo número desta série, a Sra Maria Sete foi linchada não apenas por se suspeitar que albergava criminosos, mas também - e talvez principalmente - porque era uma mulher forte temida pelos homens e que, inclusivamente, libertou uma cobra quando estava a ser agredida.
Temos, assim, todo um quadro de situações consideradas anómalas: viver num cemitério, ter uma força descomunal -coisa julgada absurda numa mulher - e ser habitado por uma cobra. Se a situação de crise social é aguda, se é considerada anormal, anormal é também a figura do bode expiatório. Não interessa o que ele é, salvo que é anómalo. O que parece ser, é. Não se discute. O estranho deve pagar pela estranheza que revela, estranheza que pode ser produto de uma crença permanente e retro-alimentada numa criminalidade sem perímetro. Ele torna-se o exutório da angústia acumulada. Ele paga por tudo e por todos. Ele é a solução final numa noite, numa madrugada, na violência da agressão física, sob o fogo libertador e cruel de um pneu incendiado e colocado ao pescoço da vítima indefesa.

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