01 julho 2007

O conflito na produção de heróis em Moçambique (3)


Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
E em tamanho natural,
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto
(Reinado Ferreira)
O que é um herói? Um herói é alguém a quem, colectiva, inter-subjectivamente (excluo a análise dos heróis pessoais), atribuímos qualidades extraordinárias, fora do comum, alguém que perdeu digamos que as suas qualidades humanas e se transformou numa espécie de deus terreno, de deus profano. Para enunciar um truísmo, um herói nunca existe a montante, mas a juzante das nossas representações sociais.
A morfologia da heroicidade é, naturalmente, vasta e variada. O herói não tem um centro temático ou uma linha de pureza ou de impureza. Os impuros de uns são os puros de outros e vice-versa. Os heróis são tantos quantas as nossas necessidades em guias, em referenciais, em modelos de conduta, em territórios de combate. E, regra geral, consoante a intensidade e a extensão das lutas entre grupos sociais ou nacionais.
Heróis são seres que, com o tempo, unificámos psicológica e socialmente numa matriz comportamental única e virtuosa, da qual eliminámos os defeitos e, até, as qualidades humanas comezinhas. Mas mais: em quem, muitas vezes, hipervalorizámos um aspecto de conduta (que pode ser motivo de retrabalho permanente e de acréscimo) deixando outros na penumbra ou na completa penumbra. Estas as razões por que certos heróis podem ser iminentemente políticos ou completamente políticos.
Os heróis existem em todo o lado e desde sempre. Somos produtores naturais de heróis, de hiper-eus nas diversas socializações pelas quais atravessamos a vida e a história. Os mais pequenos agrupamentos dispõem de heróis, de guias. Os heróis tanto podem habitar um lar, um grupo de famílias, uma rua, quanto uma prisão, tanto podem estar mortos quanto vivos e, estando mortos, estarem vivos.
Temos heróis de magnitude diferente. Um herói nacional dispõe, claro, de um peso de irradiação oficial bem maior de que aquele de que dispõe um herói do Xiquelene, dos meandros do crime ou das matas de uma guerrilha.
Mas isso não significa que o peso informal, não oficial, dos heróis, seja pequeno: um herói dos quarteirões populares ou das sagas campesinas de luta pode ser mais intensamente sentido e glorificado do que um herói decidido numa reunião do grupo dirigente de um partido e regulamente projectado nos órgãos de comunicação.
Os heróis criados por grupos dirigentes, estatais ou políticos, podem não ser adoptados pelos cidadãos, podem não ter significado afectivo e comportamental para os cidadãos.
E os heróis podem ser motivo de conflito agudo entre grupos e partidos. Melhor dito: são quase sempre. Os heróis oficiais são o estandarte de uma competição política, nacional ou inter-nacional. E quanto mais mais partidarizado for um Estado, mais políticos e mais central e unilateralmente decididos são os seus heróis e, portanto, menos possibilidades têm de ser populares ou popularmente aceites.
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Poderei rever estas notas rápidas, estas breves hipóteses. Estais dispostos a criticar, a melhorar, a sugerir?

2 comentários:

Anónimo disse...

Boas-vindas Prof. Serra
Gostei das suas breves, mas profundas hipoteses.
E porque estamos no campo das hipoteses, digamos, por hipotese, que a historia de partidos politicos 'e, tamb'em, a hist'oria da gestao da heroicidade. Be'ula.

Carlos Serra disse...

Justamente, justamente!