19 julho 2007

Sobre os linchamentos em Maputo


Eis algumas conclusões provisórias que ontem apresentei, no anfiteatro principal da Faculdade de Medicina, perante numerosa assistência e após as intervenções de oito colegas, no primeiro seminário (mais dois se seguirão) de divulgação de resultados preliminares de uma pesquisa que a Unidade de Diagnóstico Social executa sobre linchamentos em Maputo:

  1. Nas percepções populares, o Estado é sentido como incapaz de resolver os problemas dos cidadãos, em especial no que concerne à Polícia.
  2. Nesse contexto percepcional, os linchamentos são um protesto contra essa incapacidade.
    E são um protesto que se faz com a privatização da violência e da justiça face a uma situação em que os cidadãos não confiam na polícia e, eventualmente, nos tribunais.
  3. Se são uma manifestação de desordem social, os linchamentos não são menos um protesto contra essa desordem.
  4. Todo o processo linchatório é sentido como uma catarse social, como uma purificação, como uma espécie de expulsão dos males sociais. A transformação de um criminoso ou de um inocente em vítima sacrificial é, no fundo, ao mesmo tempo uma crítica e um apelo que se faz ao Estado.
  5. Não é vital que o linchado seja efectivamente culpado de um crime: basta que ele se constitua como bode expiatório, como um corpo estranho, suspeito, como que o repositório imediato de uma violência contida e à espera de jorrar.
  6. A festa linchatória que tanto condenamos e na qual participam mulheres e crianças, é, também, a festa que comemora a “purificação” da comunidade dos males que ela acha que a apoquentam.
  7. Um linchamento é tacitamente assumido por toda uma comunidade pois cada morador sente-se vitimado quando alguém é violado, roubado ou morto ou quando um crime se dá em outro bairro mas repercute localmente e é simbolicamente assumido como local, como tendo sido localmente cometido.
  8. Essa a razão do imperativo da cultura do silêncio, mecanismo de auto-defesa pelo qual ninguém viu, ouviu ou disse algo em relação aos linchamentos. O linchamento é assumido como acto comunitário global, independentemente de todos terem ou não participado nele.
    A cultura do silêncio é, de alguma forma, o manifesto da privatização da violência e da justiça e o símbolo de um curto-circuito na relação entre cidadãos e Estado, entre as expectativas daqueles em relação a este.
  9. A polícia (mas tb os jovens membros que fazem o policiamento comunitário) é tida como a responsável pela falta de segurança nos bairros. Todavia, os linchamentos têm à sua retaguarda muitos fenómenos percutores que só colocados em rede, em conjunto e em interacção permitem compreender todo o processo que desagua no linchamento. A polícia é, apenas, uma parte dessa rede fenoménica, rede que tentaremos futuramente aprofundar.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Prof,
De facto foi um bom seminário e teve valiosas contribuições, mormente sob o ponto de vista metodológico. Comecei uma reflexão ontem que aínda está inacabada. Gira em torno do conceito justiça. Pelo que percebi, as massas equiparam o linchamento à justiça. Daí justiça pelas próprias mãos. Recuando para os anos subsequentes à independência nacional, tivemos a dita justiça popular que de uma ideia nobre descambou em espectáculos gratuítos de violência, sancionados pelo partido-estado (M Cahen). Falo dos fuzilamentos dos supostos traídores da pátria.

Estamos aquí perante dois fenómenos que têm características diferentes, mas, quanto a mim, com alguns traços comuns. A justiça popular, vulgo linchamento, não será herança ou resquícios da justiça popular sancionada? Se atentarmos ao comportamento da polícia que quase nunca nos diz quem foram os autores morais e materiais, o que percebemos? Me parece que há uma aparente conivência da corporação, e uma autorização tácita da mesma. E se factorarmos para o facto da mesma polícia também ser acusada de execuções sumárias (privatização de crime), podemos especular a existência de uma psique generalizada manisfestada ou em linchamentos para o povo, ou execuções sumárias para a polícia. Portanto, a convivência com as leis aínda é uma quimera. E o que dizer sobre o conhecimento de lei?

Carlos Serra disse...

Aí estão tópicos merecedores de reflexão e pesquisa. Se quiser, apareça nas sessões da UDS às quartas-feiras, 12 horas, Centro de Estudos Africanos...

Anónimo disse...

Muito obrigado pelo convite. Hei-de honrá-lo sempre que puder.
Abração