É fácil uma experiência em química ser replicável, no sentido de que vários cientistas a podem reproduzir num laboratório. É improvável que uma investigação em ciências sociais possa ser replicável. Um questionário, por exemplo, pode dar o resultado A no momento X e dar o resultado B no momento Y. Por quê? Porque as linhas e as opções do comportamento humano são rizomáticas, vastas, dialécticas, sempre em bifurcação.
Nós, estudiosos do social, fomos buscar às ciências naturais a maior parte dos seus pressupostos, a pretensão do seu rigor (pelos quais um Durkheim tanto lutou), a convicção das leis para uns, da simples verdade para outros. Para parecermos ainda mais rigorosos, criámos regras de estruturação de artigos e teses, estipulámos severas normas para a quantidade de palavras desejável para uma tese ou para uma publicação.
Talvez fosse mais justo voltarmos a uma linha de pensamento que fizesse das chamadas ciências sociais, humanidades, no pleno sentido de percurso cognitivo sempre inacabado, que assumíssemos que investigar os seres humanos, vivos ou mortos, é simplesmente um momento de pintura ou de escultura; que, com um pincel ou com um escopro ou com um cinzel, apenas tentamos e podemos pintar ou esculpir ou cinzelar o que nos é possível pintar, esculpir ou cinzelar no interior dos nossos princípios, dos nossos valores, das nossas posições sociais, das nossas crenças, dos nossos postulados; que, fazendo-o, a nossa única segurança talvez consista na honestidade de o fazer, conscientes de tudo aquilo que nos socializou, com rigor, sujeitando o nosso trabalho a um permanente confronto de ideias, seja ao nível dos seminários, seja ao nível dos livros e das revistas de especialidade, seja, enfim, no crivo do nosso eremitério. Ou talvez a nossa única esperança esteja no mirante social que escolhemos para estudar os outros.
Não se trata de um apelo ao irracionalismo nem de um manifesto de descrença. Pelo contrário, trata-se de um apelo ao racionalismo re-humanizado e de um manifesto de neo-crença optimista.
Importa, hoje mais do que nunca, acordarmos do nosso sono dogmático, como diria
Kant, para, com juventude readquirida, procedermos a uma neo-revolução coperniciana: deixaríamos de admitir que são os outros que andam à nossa volta quando os estudamos, para admitir que devemos ser nós a andar à volta deles, a interrogá-los melhor. Mas antes de o fazermos, devíamos, primeiro, andar à volta de nós mesmos, num permanente movimento de rotação, interrogarmo-nos nos nossos pressupostos, na nossa vaidade de cientistas, no nosso dogmatismo. Na verdade, hoje, mais do que estudar os outros, devemo-nos estudar a nós mesmos, à nossa condição vaidosa e muitas vezes arrogante de investigadores, devemos ter a coragem de fazer a sociologia de nós-próprios.
Mas o facto de propormos a transformação das ciências sociais em humanidades, não significa pôr de lado o rigor, como, aliás, já fizemos notar mais acima. Por isso ao defendermos, como proposta prudente, as etapas de uma investigação que se seguem (as primeiras das quais encontráveis em muitos manuais), sugerimos que elas sejam vistas como indicadores de um duplo rigor: o rigor dos procedimentos formais e o rigor dos procedimentos artísticos. Na verdade, um não pode, em nosso entender, viver sem o outro. Nenhum trabalho científico pode viver sem criatividade, sem beleza, sem narrativa elegante, sem a humanização da escrita. Importa tanto o que se escreve quanto como se escreve. Um texto que desejamos científico (no sentido de aproximação crescente ao rigor) não pode ter a aridez de um teorema matemático ou de uma exposição do funcionamento dos fractais. Porque, ao fim e ao cabo, “as palavras fazem amor”.
Tenhamos sempre presente que uma investigação do comportamento social tem, invariavelmente, o sinete da emoção, provavelmente como na poesia. Por vezes, uma frase num livro, modesta que seja, pode despertar seja um tema, seja o próprio corpo teórico de uma pesquisa. Por exemplo, a obra de Frantz Fanon, especialmente os seus escritos psiquiátricos, contêm múltiplos detonadores epistemológicos e metodológicos. Uma frase de um livro de Shakespeare pode, até, acordar em nós ou, se quiserdes, reacordar em nós o jovem militante da inovação teórica entorpecido pelo rigor de Laplace e dos manuais espartanos.
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