As cidades moçambicanas são uma subversão permanente da visão de uma África natural, tradicionalizada, metida para sempre no frigorífico da história (1). De facto, elas são constantemente ruralizadas, com reagrupamentos simbólicos e mestiçados abundantes, numa cultura de bricolagem ainda mal conhecida (2). É nelas onde os actores estão num vaivém incessante e contraditório entre o mundo de fora e o mundo de dentro: os meios de comunicação e o cosmopolitismo urbano tornam-nos cidadãos do planeta e dos seus heróis, mas a procura de pontos de referência e as dificuldades de sobrevivência social fá-los reciclar e re-interpretar a região de origem, recriar a solidariedade étnica (o "somos todos primos" dos mercados e dos comes-e-bebes informais, por exemplo) e reciclar os heróis epónimos (3). Estão cada vez mais na economia-mundo sem poderem abandonar a economia local e vice-versa: é este o seu double bind. Quanto mais dificuldades sociais no mundo de fora, mais estreitos os laços e as fronteiras do mundo de dentro. Se por um lado não existem já verdadeiramente nem tradição nem modernidade, por outro vai-se àquela para a modernizar e a esta para a tradicionalizar consoante os momentos, os processos e as cristas das tensões sociais. Esgrime-se a etnicidade quando estão em causa os recursos de poder locais, o racismo defensivo quando estão em causa os recursos de poder dos estrangeiros. O presente é encarado pelos olhos do passado, o passado pelos olhos do presente. A aspirina casa-se com a efusão do curandeiro. Este é, afinal, um mundo mestiço de entre-dois, um mundo anfibológico, fractal, um mundo onde o mesmo e a diferença são permanentemente canibalizados e reestruturados.
1 Mas o campo também: um exemplo é a penetração crescente dos estilos musicais do tipo beat, rap ou zook, juntamente com a Coca-Cola. É hoje frequente vermos crianças sub-nutridas bebendo Coca-Cola.
2 Por isso é falsa a visão tradicional campo/cidade. Mesmo os quintais das casas de alvenaria e os descampados das cidades são aproveitados para a produção de milho e de mandioca, sendo lavrados pelas mulheres com a pequena enxada curta campesina.
3 Os grupos de "crianças da rua" (expressão corrente nas cidades), rapazes e raparigas, que pululam um bocado por todo o lado, erigem como seus heróis e seus locais de habitação nomes como Rambo, Charles Taylor e Tchetchenia, por exemplo.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
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