"ENSINO BILINGUE EM MOÇAMBIQUE:PREOCUPAÇÕES QUE DEVIAM SER DE TODOS
Por Fátima Ribeiro
Por Fátima Ribeiro
Dez grandes obstáculos à vista
Ignorando todas as questões de carácter político e especificamente linguístico que também se levantam neste domínio da introdução das línguas moçambicanas no ensino, aqui recordo e actualizo, em síntese, alguns dos problemas para os quais tenho chamado a atenção, alertando para a necessidade urgente de uma abordagem mais global do Programa de Educação Bilingue, uma fundamentação mais consistente do que se está a estabelecer, e uma urgente definição de responsabilidades para a prevenção do que poderá acontecer:
1. Planificação – No verdadeiro “marketing social” que tem vindo a efectuar, o MEC tem afirmado que caberá aos pais decidir em que modalidade, monolingue ou bilingue, inscrever a criança. Com que base se fará a planificação global das necessidades (salas de aula, professores, livros, meios logísticos) e a previsão dos respectivos custos?
2. Financiamento – Acarinhado por alguns doadores, o Programa de Educação Bilingue tem beneficiado de grande financiamento externo. O nível de financiamento acompanhará na devida proporção a expansão do ensino bilingue? Que acontecerá se o desempenho e os resultados não corresponderem às expectativas dos doadores?
3. Estruturas do MEC – Na prática, para todo o ensino primário, passará a haver dois sistemas dentro do sistema nacional de educação: o monolingue e o bilingue, e este terá duas dezenas de variantes, correspondentes às línguas bantu moçambicanas. Está o Estado capaz de duplicar e, para a modalidade bilingue, “vintuplicar” as funções e os órgãos necessários, tais como órgãos de apoio pedagógico, inspectores, comissões de exames?
4. Livros do aluno e do professor – Para os sete anos do ensino primário, em vez de algumas dezenas, como acontece presentemente, passarão a ser necessários milhares de livros, que terão de ser concebidos, revistos, testados, impressos, distribuídos, actualizados, garantidos ao aluno e ao professor totalmente a expensas do Estado. No curto e médio prazos, não estamos capazes de o fazer, o que o próprio programa “experimental” já comprovou: as primeiras turmas submetidas ao ensino bilingue estão agora a meio da 5ª classe, e já no início do próximo ano lectivo também a 6ª classe precisará de materiais nas línguas locais. Apesar dos grandes esforços que têm sido empreendidos desde inícios da década de 90 com o projecto PEBIMO, esse sim experimental, os livros produzidos apenas atingem a 4ª classe[1].
Recordo que para aquele projecto era por vezes em meados de um ano que se começavam a fazer livros para serem usados no ano seguinte, problema que, como vemos, ainda hoje se verifica. Com que qualidade estão a ser feitos? E que acontecerá quando tiverem de ser actualizados ou substituídos?
5. Logística. Um simples exemplo baseado na nossa experiência: todos os directores de escola e professores (e também os funcionários das direcções de educação a todos os níveis) que viveram, logo após a independência, a introdução do novo currículo e dos novos manuais, muitas vezes apenas dactilografados e policopiados pelas Comissões de Apoio Pedagógico e Zonas de Influência Pedagógica, as chamadas CAPs e ZIPS, se recordam do esforço de reprografia que foi necessário para garantir a si próprios e aos alunos materiais de ensino e aprendizagem. Naquela altura, eram em muito menor número as escolas existentes, e a maior parte delas, herdadas do período colonial, estavam melhor equipadas que a grande maioria das que hoje possuímos. Que farão presentemente as escolas, classes ou turmas às quais não se conseguirem fazer chegar os manuais e outros materiais de ensino-aprendizagem específicos do ensino bilingue?
6. Qualidade da formação de professores – Os professores primários, com uma formação geral já por si muito insuficiente, não sabem escrever nas línguas que vão ensinar. Estão a aprendê-lo em escassos dias ou semanas, e assim terá de continuar a ser no curto e médio prazos, por muitos que sejam os esforços na formação via currículos “normais” acelerados. A grande maioria dos professores não vão adquirir a consistência necessária para transmitir um mínimo de segurança aos seus alunos, crianças das primeiras classes que só virão a escrever em português anos depois.
7. Número de professores – Para que os pais tenham o direito de opção por uma das modalidades, monolingue ou bilingue, caberá ao Estado o dever de garantir o funcionamento simultâneo das duas modalidades nas mesmas localidades. O eventual aumento do número de professores primários rurais resultante dessa obrigação não parece estar a merecer a devida preocupação.
8. Mobilidade dos professores – Como cada professor só poderá ensinar em zona(s) correspondente(s) à(s) língua(s) que domina, ficará consideravelmente reduzida a sua mobilidade. Conseguiremos nós cobrir, só com professores da mesma zona linguística, as necessidades das áreas mais carenciadas em recursos humanos, como, por exemplo, a área echuwabo, na província da Zambézia?
9. Substituição e reposição de professores – Com uma esperança de vida à nascença a tender para os 36 anos e a elevada taxa de morbilidade que sabemos existir entre nós, não conseguiremos garantir reposições e substituições temporárias dos professores com formação para o ensino bilingue. Que farão os alunos sem professor em períodos relativamente prolongados?
10. Proficiência dos alunos em língua portuguesa no final do ensino bilingue e continuidade no tronco comum do sistema nacional de ensino, os indicadores-chave de resultados finais de todo o programa – A exposição dos alunos à língua portuguesa no ensino primário vai ser extremamente reduzida. Terão eles, terminado o ensino bilingue, atingido um desempenho oral e escrito que lhes permita prosseguir no tronco comum do sistema nacional, com o português como língua de ensino de todas as disciplinas? Não me parece que o programa “experimental” tenha garantido essa transição após o EP1, como estava inicialmente previsto. Um eventual fracasso do sistema fará aumentar, no ensino secundário, a taxa de insucesso escolar e a segregação “natural”, já actualmente gritante, baseada no domínio da língua portuguesa.
Ignorando todas as questões de carácter político e especificamente linguístico que também se levantam neste domínio da introdução das línguas moçambicanas no ensino, aqui recordo e actualizo, em síntese, alguns dos problemas para os quais tenho chamado a atenção, alertando para a necessidade urgente de uma abordagem mais global do Programa de Educação Bilingue, uma fundamentação mais consistente do que se está a estabelecer, e uma urgente definição de responsabilidades para a prevenção do que poderá acontecer:
1. Planificação – No verdadeiro “marketing social” que tem vindo a efectuar, o MEC tem afirmado que caberá aos pais decidir em que modalidade, monolingue ou bilingue, inscrever a criança. Com que base se fará a planificação global das necessidades (salas de aula, professores, livros, meios logísticos) e a previsão dos respectivos custos?
2. Financiamento – Acarinhado por alguns doadores, o Programa de Educação Bilingue tem beneficiado de grande financiamento externo. O nível de financiamento acompanhará na devida proporção a expansão do ensino bilingue? Que acontecerá se o desempenho e os resultados não corresponderem às expectativas dos doadores?
3. Estruturas do MEC – Na prática, para todo o ensino primário, passará a haver dois sistemas dentro do sistema nacional de educação: o monolingue e o bilingue, e este terá duas dezenas de variantes, correspondentes às línguas bantu moçambicanas. Está o Estado capaz de duplicar e, para a modalidade bilingue, “vintuplicar” as funções e os órgãos necessários, tais como órgãos de apoio pedagógico, inspectores, comissões de exames?
4. Livros do aluno e do professor – Para os sete anos do ensino primário, em vez de algumas dezenas, como acontece presentemente, passarão a ser necessários milhares de livros, que terão de ser concebidos, revistos, testados, impressos, distribuídos, actualizados, garantidos ao aluno e ao professor totalmente a expensas do Estado. No curto e médio prazos, não estamos capazes de o fazer, o que o próprio programa “experimental” já comprovou: as primeiras turmas submetidas ao ensino bilingue estão agora a meio da 5ª classe, e já no início do próximo ano lectivo também a 6ª classe precisará de materiais nas línguas locais. Apesar dos grandes esforços que têm sido empreendidos desde inícios da década de 90 com o projecto PEBIMO, esse sim experimental, os livros produzidos apenas atingem a 4ª classe[1].
Recordo que para aquele projecto era por vezes em meados de um ano que se começavam a fazer livros para serem usados no ano seguinte, problema que, como vemos, ainda hoje se verifica. Com que qualidade estão a ser feitos? E que acontecerá quando tiverem de ser actualizados ou substituídos?
5. Logística. Um simples exemplo baseado na nossa experiência: todos os directores de escola e professores (e também os funcionários das direcções de educação a todos os níveis) que viveram, logo após a independência, a introdução do novo currículo e dos novos manuais, muitas vezes apenas dactilografados e policopiados pelas Comissões de Apoio Pedagógico e Zonas de Influência Pedagógica, as chamadas CAPs e ZIPS, se recordam do esforço de reprografia que foi necessário para garantir a si próprios e aos alunos materiais de ensino e aprendizagem. Naquela altura, eram em muito menor número as escolas existentes, e a maior parte delas, herdadas do período colonial, estavam melhor equipadas que a grande maioria das que hoje possuímos. Que farão presentemente as escolas, classes ou turmas às quais não se conseguirem fazer chegar os manuais e outros materiais de ensino-aprendizagem específicos do ensino bilingue?
6. Qualidade da formação de professores – Os professores primários, com uma formação geral já por si muito insuficiente, não sabem escrever nas línguas que vão ensinar. Estão a aprendê-lo em escassos dias ou semanas, e assim terá de continuar a ser no curto e médio prazos, por muitos que sejam os esforços na formação via currículos “normais” acelerados. A grande maioria dos professores não vão adquirir a consistência necessária para transmitir um mínimo de segurança aos seus alunos, crianças das primeiras classes que só virão a escrever em português anos depois.
7. Número de professores – Para que os pais tenham o direito de opção por uma das modalidades, monolingue ou bilingue, caberá ao Estado o dever de garantir o funcionamento simultâneo das duas modalidades nas mesmas localidades. O eventual aumento do número de professores primários rurais resultante dessa obrigação não parece estar a merecer a devida preocupação.
8. Mobilidade dos professores – Como cada professor só poderá ensinar em zona(s) correspondente(s) à(s) língua(s) que domina, ficará consideravelmente reduzida a sua mobilidade. Conseguiremos nós cobrir, só com professores da mesma zona linguística, as necessidades das áreas mais carenciadas em recursos humanos, como, por exemplo, a área echuwabo, na província da Zambézia?
9. Substituição e reposição de professores – Com uma esperança de vida à nascença a tender para os 36 anos e a elevada taxa de morbilidade que sabemos existir entre nós, não conseguiremos garantir reposições e substituições temporárias dos professores com formação para o ensino bilingue. Que farão os alunos sem professor em períodos relativamente prolongados?
10. Proficiência dos alunos em língua portuguesa no final do ensino bilingue e continuidade no tronco comum do sistema nacional de ensino, os indicadores-chave de resultados finais de todo o programa – A exposição dos alunos à língua portuguesa no ensino primário vai ser extremamente reduzida. Terão eles, terminado o ensino bilingue, atingido um desempenho oral e escrito que lhes permita prosseguir no tronco comum do sistema nacional, com o português como língua de ensino de todas as disciplinas? Não me parece que o programa “experimental” tenha garantido essa transição após o EP1, como estava inicialmente previsto. Um eventual fracasso do sistema fará aumentar, no ensino secundário, a taxa de insucesso escolar e a segregação “natural”, já actualmente gritante, baseada no domínio da língua portuguesa.
NOTAS
[1] Cf. Jornal “Notícias”, 01.07.08, primeira página.
[1] Cf. Jornal “Notícias”, 01.07.08, primeira página.
1 comentário:
Na nota de rodapé, em vez de 01.07.08, leia-se 01.08.07.
Fátima Ribeiro
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