09 julho 2007

As veredas da sexualidade perigosa (3) (fim)

I
Ora, o que está realmente em causa na Dama do Bling (aliás, Ivânia), o que a torna perigosa ao cantar e dançar expondo não o corpo, mas a sexualidade nele contida?
É a desagregação da posse androcêntrica privada, é o desmurar ostensivo do exclusivo da posse, é a contaminação instintiva que ela efectua simbolicamente da sexualidade das outras mulheres, é a desprivatização do prazer possível. A moral vem a terreiro não por causa da nudez da Dama, mas por causa do reflexo impiedoso que ela introduz nos corpos de outras mulheres, de todas as mulheres.

II
Escreveu o Lázaro Mabunda que na sua terra natal as partes sagradas são vedadas ao olhar público, as partes mais sagradas devem ficar cobertas "desde os joelhos até ao pescoço". Tem razão no perímetro histórico que é o seu e o nosso, período no qual o vedamento do corpo, o vedamento do que ele chama partes sagradas, se tornou uma regra, acompanhado da moral consequente. Porém, época houve já, bastante longa, na qual na terra natal de Mabunda - bem como nas nossas outras terras natais do país - o corpo não estava coberto como hoje. Os seios, por exemplo, estavam expostos e não tenho conhecimento de que, por esses tempos recuados, do século XIX para trás, proponhamos assim, a moral reinante fosse de condenação. O corpo feminino exposto não dava lugar (naturalmente que não estou a ter em conta as excepções, eventualmente as haveria) à crítica porque o controlo androcêntrico da sexualidade se fazia através de outras instâncias, especialmente através de uma fixação quase permanente das mulheres nas casas e na machamba. O espaço urbano ainda não existia e portanto a mobilidade das mulheres era restrita. As cidades são, sempre, o campo por excelência da desprivatização da sexualidade feminina. Por isso os homens criticam frequentemente e das mais variadas formas as cidades e a dissolução da moral e dos costumes.

III
A Dama do Bling, como outras damas espalhadas pelo mundo, pertence a uma época histórica que se firma muito rapidamente, cuja cadência é veloz, uma época histórica que desnuda sistematicamente o corpo e o dota de sexualidade em estado puro, total. Aqui, na net, podemos folhear milhares de sites e de blogues que tratam sem limites o corpo, a sexualidade, a polivalência do prazer sexual. Esses espaços são produzidos por mulheres e por homens, especialmente por homens: aquelas ampliando a desprivatização androcêntrica, estes a um tempo pilotando a nova étapa histórica (aparentemente emancipados, perversa coisa, das grilhetas sagradas de Mabunda) e dando corpo a um registo imagético que nem sempre a privacidade permite pôr em marcha (muito haveria que analisar neste campo, claro). Ao Mabunda - como, afinal, à maior parte de nós, eu aqui incluído por inteiro - apenas resta o exercício de uma consciência moral crítica que pertence a um outro período histórico, em decomposição. Analisamos a nova era com as categorias analíticas da antiga. Estamos confrontados, permitam-me dizer, com o paradigma da língua, a saber: a aprendizagem de uma nova língua faz-se sempre retraduzindo-a na língua natal. A nova língua só é verdadeiramente falada quando somos capazes de a falar esquecidos do espírito da língua materna. Ora isto não é nem nunca será fácil. Por quê? Porque somos habitados em permanência pelos espíritos dos mortos.
IV
O jornalista Mabunda não é o único a ver nos estrangeiros a razão de ser de muitos males (é assim que vemos as coisas, como males, como doenças) que nos apoquentam. Regra geral temos tendência para atribuir ao Outro a razão de uma evolução, negativa ou positiva. Quais são os pressupostos? Os pressupostos são dois: (1) a assunção de um estado social primordial puro, doce, cândido, sem história; (2) a atribuição a outrem (ao estrangeiro) do fabrico e da condução do motor da história. É com esses dois pressuposos que damos depois corpo ao embelezamento do passado e à formulação de uma espécie de integrismo moral por forma a que possamos proteger-nos e sentir-nos bem quando os ventos da história nos fustigam e temos dificuldade em dotar-nos da pedalada da Lurdes Mutola.
V
Finalmente e a propósito da nossa natureza, da nossa africanidade: criticamos a nudez da Dama, mas achamos natural que as nossas dançarinas dancem como dançam, frequentemente com o corpo frontalmente exposto, no interior de uma sexualidade pujante e variada que atravessa em permanência cada passo, cada torção, cada combinação corporal. Cada uma das nossas danças é um hino saudável à sexualidade, à sua naturalidade, ao bem-estar que nos dá.

11 comentários:

JCTivane disse...

Um trabalho todo ele muito a favor das mulheres. Estou a favor do Mabunda. Mas sem duvida um trabalho brilhante. Tenho dito.

Carlos Serra disse...

Escrevi sobre a sexualidade de uma étapa histórica que analisamos com os olhos da antiga. Naturalmente que tb procurei descontruir a visão androcêntrica que temos da sexualidade feminina. Se o texto lhe parece ter uma vertente pró-feminina, só me resta aceitar a multiplicidade de sentidos com que a escrita pode ser recebida. Abraço.

Anónimo disse...

E se analisarmos a sexualidade com os olhos da actual etapa, a "visão androcêntrica que temos da sexualidade feminina" desapacerá?
Que nos garante que estamos perante problemas de etapas históricas, de normatização ou de controlo da sexualidade feminina.
Por que razão ou, o quê que nos leva a olhar a "Dama de bling" com os olhos de passado? Saudosismo de puritarismo sexual? Dificuldades de nos inserirmos na etapa histórica actual, a etapa "Damablinguiana"? Estarão, dentro do nosso contexto social, a Dama do bling e as pessoas que fazem apologia do seu desempenho artistico, a viver e a olhar com os olhos do presente a etapa histórica actual. Muitas perguntas...Beúla

Carlos Serra disse...

Sem dúvida, muitas e boas perguntas. A minha preocupação foi, apenas, a de colocar algumas notas teóricas para um debate. Abraço.

Anónimo disse...

A sexualidade é por excelencia masculinizada. se a dama do Bling expoe o seu corpo nos espetcaulos é porque provavelmente ha homens que o permitiram. Engraçado é que esta discusao foi levantada por homens!Continua a ser debatida por homens. reparem nos blogs e nos jornais. Qdo as mulheres mantem blogs abordando a sexualidade nas suas multiplas vertentes aparecem como anonimas para o grande publico.Mas, com o conhecimento do seu parceiro, exemplo Diva e Escorpiao em momentos de vida.
Uma amiga minha disse-me ontem a frase que transcrevo a seguir "mulher sozinha nao tem direito de existir". Assim pergunto, a sexualidade nas diferentes etapas historicas nao sera reflexo dos olhos sempre "actuais" do mundo masculinizado? IA

Carlos Serra disse...

Uma boa questão, sem dúvida. Seria interessante que, por exemplo, Diva e o Escorpião lhe respondessem, para nos situarmos no contexto que sugere....

belmiro disse...

A VERGONHA CULTURAL COLECTIVA DE UM POVO

Por José Belmiro

“A juventude de hoje está corrompida até ao coração. É má, ateia e preguiçosa. Jamais será o que a juventude deve ser, nem será capaz de preservar a nossa cultura”.
(de uma inscrição gravada numa tabuínha babilónica do século XI antes de Cristo...)

De um tempo a esta parte um grupo de jovens sob capa de autores da “música jovem moçambicana” tem vindo ocupar espaços reservados a música em todos os canais de rádios e televisão.
Estes músicos que o corajoso José Mucavel intitulou-os de músicos do PIMBA, na sua generalidade não trazem nada nas suas mensagens musicais. Neste contexto iremos ouvir frases do tipo:
“Eu sou patrão, tenho carros, tenho damas bonitas, sou talentoso, brilho no Brasil… enfim, um conjunto de barbaridades”.
Também é “arma” destes “jovens músicos” o recurso a bajulação. Os seus alvos preferidos são Chefes de Estado, o partido no poder e as empresas públicas.
Neste tipo de músicas pontifica o nome do controverso músico Mc Roger. Dele ouvimos dizer que viajou para o Brasil com apoio do Ministério do Turismo! Confesso que fiquei indignado ao saber que os impostos que pagamos mensalmente ao Estado são agora disponibilizados a artistas não credenciados para representar culturalmente o nome de Moçambique bem como 19 milhões de moçambicanos!
O Brasil ficou com uma impressão errada da cultura moçambicana. A cultura reflecte a alma de um povo. A música do Mc Roger não representa nem de longe a alma dos moçambicanos.
Tenho escutado as diversas intervenções deste e doutros cantores da alegada “música jovem”.
Orgulham-se por terem nas crianças os maiores consumidores da sua música. Olha as crianças são por naturezas ingénuas e vulneráveis. Neste vale de aguas turvas por onde a nossa música encontra-se mergulhada, a componente nudismo é usada pelas “jovens da música” para que a todo o custo sejam assistidas (normalmente a televisão é o principal palco de acção), não se importando pelos exemplos que vão deixando para as suas fãs adolescentes.
Quando os mais adultos se indignam, elas mandam todo mundo para a RUA, alegadamente porque só elas sabem de si!
Esquecem-se no entanto que precisam destas mães e pais, pois estes são os que deixam os filhos menores irem para os Cine-África, Coconuts assistirem os seus Shows!
Pena é que um dos poucos melhores compositores jovens da Praça o Mahel decidiu render-se ao mundo do PIMBA alegadamente porque precisa viver bem. Remove-se desta feita um dos últimos redutos de alguma música jovem com algum sentido e coerência lógica!

Carlos Serra disse...

Belmiro, vou destacar o seu texto. Abraço!

Anónimo disse...

É interessante como há pessoas, neste país, que se interessam e se aproveitam de ninharias (mesquinhices), para alcançarem os seus intentos pouco claros.
Devíamos nos preocupar mais com os problemas do nosso país (a corrupção generalizada, a criminalidade por todos os cantos, as eleições, a saúde, a educação,etc), no lugar de criticar a maneira como a "nossa" DAMA DO BLING se apresenta em palco!!!
O mal das sociedades em desenvolvimento é que acham-se todos pensantes (no seu verdadeiro sentido)!
O país necessita, de facto, de pessoas que pensam, pessoas com ideias claras sobre o que desejam desenvolver. Pois estes constituirão a mais valia para o desenvolvimento do país.
A maneira de a DAMA DO BLING se apresentar em palco (que esteje bem, claro,em PALCO), não é um assunto de debate nacional!
Abrimos as portas do país ao mundo, foi, penso, para aproveitarmos do que eles têm de bom (o conceito de o que é BOM, é extenso e dicutível). É preciso ensinar a nossa juventude a Pensar! A viver em sociedade, sem alienar a sua cultura alheia.
O caos está instalado. Levamos uma vida apressada, preocupados com ganhos económicos, deixando para trás a educação do filhos que nos mesmos geramos. Enfim, uma mentalidade de terceiro-mundistas.

Mechisso Gerson

Carlos Serra disse...

Aqui fica o seu comentário, certamente o lerão. Abraço!

Anónimo disse...

A "sociedade" tem agora assunto para debater, esta Dama envolta numa carnificina cujos precedentes são as suas opções - conscientes - para se dar à fala. Dá-me a impressão de que o que está a acontecer é tanta fúria a ser descarregada num saco já pequeno, definhado. A crítica à Dama é uma espécie de barómetro para a repudiar o que a nossa sociedade não quer ou não aceita. Explico-me melhor:
Não se está a analisar um assunto - salvo pouquíssimas opiniões, algumnas delas neste blog - mas uma pessoa. Fala-se de moral mas ataca-se à Dama sem se olhar para o que a rodeia. Os defensores da moral, ao invés de virem com "argumentos" do tipo "ela fere a moral africana" deviam dizer o que tem de mal alguém escolher a "nudez" para se definir como artista.
Neste aspecto, para mim ela tem todo o direito de fazer o que quiser com o seu corpo - com ela mesmo -, incluindo "streapar". Os promotores de espectáculo é que devem saber onde pô-la. A Dama do Bling não está a fazer seja o que for de imoral, porque moral é um mundo de várias percepções e de nenhum padrão, para o nosso caso, que censuramos o comportamento dos outros "porque no tempo dos nossos avós..."
Quero acreditar que a presente algazarra se deve à falta de preparação da nossa sociedade para encarar alguns fenómenos. Uma mulher seminua é um agrado para seja quem for no seu "eu", mas para o colectivo ao invés de se multiplicar ou somar a opinião de cada "eu", que totaliza o "eu" colectivo, o que sai é um "nós" repudiador, envolto numa falsidade opinativa pobre e de senso zero. Descasque-se a opinião colectiva, se for possível...
Qual foi a opinião colectiva quando a falecida Zaida Hlongo era ainda débutant em matéria de ser escandalosa? Imoral, baixa e até puta, para além de 1003 outros nomes. E como terminou? Ídolo de "toda" a nação. Que hipocrisia colectiva, né?
Pessoalmente gosto e não gosto de ver a Dama do Bing, aliás Ivânea. Gosto porque, como mulher, é algo tangível, no sentido de fisicamente apreciável. Deploro é a sua vaidade, que se tornou no invólucro de uma rebeldia despida de razão. O conteúdo das suas letras sustenta o que quero dizer.
Mais: o facto de ela aparecer a dançar no Coconuts e no Cine África a "streappar" é da exclusiva responsabilidade dos gestores destes espaços. Fosse eu dono de uma discoteca e defendendo a "moral" que muitos apregoam, simplesmente não a contratava. E aquela televisão? Quais são as fronteiras que conhece entre o permitido e o proibido? Que critérios usa? Isso é lá com a STV. Eu, fosse gestor daquele canal, não passava aquele espectáculo não porque a Dama do Bling fosse imoral mas porque a sociedade não está preparada para a aceitar como ela é. O indicador disso é o que se diz por aí.
Penso que a menina faz bem o que quer fazer mas não deve ser ali. Que seja nas boites!
A Ivânea não é imoral mas não gostaria de ver as nossas filhas segurem-lhe o exemplo porque ainda são caroço verde, sem a necessária maturidade para poderem destrinçar o bom e o mau. Ela fa-lo conscientemente e não por nenhuma imitação, de que nós somos exímios especialistas.
Em resumo, ao invés de se linchar à Ivânea, que se comece a definir padrões de moral, a começar pelos hábitos das meninas e senhoras que andam semi-nuas por aí, mesmo mais grávidas do que estava a Dama do Bling antes do aborto "motivado por críticas", conforme justificado no "Domingo" de semana passada. Gostaria que o debate mudasse de qualidade!