02 março 2008

Linchamentos, eclipse do social e bodes expiatórios (1)

"O contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia" (Heráclito)
Os linchamentos que estão a acontecer em três cidades do país (Maputo, Beira e Chimoio) suscitam as mais variadas interrogações, as mais variadas angústias, as mais variadas dúvidas.
Existe a crença generalizada de que os linchamentos ocorrem porque a polícia está ausente, porque a polícia não protege os cidadãos. Por outras palavras, é suposto que se houvesse mais polícia nas comunidades, haveria menos linchamentos, as pessoas estariam mais protegidas dos criminosos e, por isso, não privatizariam a justiça, não linchariam outras na convicção de que dessa maneira resolvem os problemas sociais, não fariam a justiça total, desumana, a da morte sumária, absolutamente definitiva, redentória, vertendo num só acto exterminador toda uma espécie de raiva social acumulada.
Esse quadro não pode ser esquecido, mas tenho para mim que o problema é bem mais complexo do que pensamos, o que exige que draguemos mais profundamente as infra-estruturas do mal-estar. Daí estas notas breves.
Por hipótese, o problema tem a ver com a sensação comunitária de uma generalizada eclipse do social e do cultural, com a sensação de que tudo se tornou insustentável e indiferenciador na sociedade, com a convicção de que as instituições formais enfraqueceram, que a vida tomou o rumo do caos. A criminalidade é, apenas, um dos lados do problema, ainda que importante. Este problema é poliédrico. E na malha variada do problema a busca do bode expiatório é vital, é como que a metástase do nódulo da vida.
O eclipse tem a ver com a percepção popular de haver uma crise. No seu sentido médico original, a crise é uma perturbação que permite um diagnóstico. Transposto para o mundo social, o conceito tem dois níveis:
1. Revelador significante de realidades latentes ou subterrâneas;
2. Revelador significante de conflito.
Uma crise não só revela quanto desencadeia uma problematização. Esta problematização, por efeito e contra-efeito (inquietação ou angústia), põe em marcha um processo, frequentemente mitológico, de racionalização, digamos que de domesticação do desconhecido, destinado a colmatar a brecha e a inquietação sociais surgidas com a subversão do habitual. Nesse processo sinuoso, com uma fase terminal paroxística, a busca de culpados, de bodes expiatórios, joga um papel fundamental e dramático.
Nota: a qualquer momento posso modificar algo no texto, o que, a suceder, será assinalado a vermelho.

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