Naturalmente que é legítimo perguntarmo-nos por que razão os linchamentos parece apenas ocorrerem em algumas cidades do país, nas suas periferias. Para uns, dado que eles apenas ocorrem em algumas cidades, é inválido defender que a pobreza está à sua retaguarda, pois essa pobreza também habita Nampula ou Tete ou Lichinga. Para outros (ainda que o pensamento não tenha à superfície com a tonalidade que vou sugerir), os linchamentos têm a ver com uma irracionalidade específica, própria, por exemplo, de Maputo, Beira, Dondo e Chimoio. Para outros ainda, os linchamentos pura e simplesmente não existem pois não estão analiticamente constituídos. Para outros, finalmente, tudo tem a ver com o aleatório. As dúvidas, as incertezas, as aporias, mas também as tentativas para penumbrar as causas sociais e a inegável realidade de que os linchamentos se registam em zonas socialmente desfavorecidas, sucedem-se. Deixem-me tentar colocar alguma ordem em tudo isso, com sete breves apontamentos:
1. O facto de os linchamentos terem uma visibilidade grande em cidades como Maputo, Matola, Beira, Dondo e Chimoio, não significa rigorosamente que não haja linchamentos em outras cidades, em outras periferias urbanas. No Brasil, por exemplo, muitos casos linchatórios não são reportados pela imprensa. Em Moçambique, disponho de observações (não confirmadas) de que há linchamentos mantidos em segredo, não comunicados. Muitas vezes, a divulgação de um linchamento depende de factores como: presença de um jornalista próximo do local ou vivendo no local, divulgação feita por alguém que não participou do linchamento mas que fez questão de o comunicar, maior permeabilidade e comunicação das comunidades, etc.
2. O facto de os linchamentos se registarem formalmente nas cidades indicadas, não significa que estamos diante de coeficientes de irracionalidade, de violência, superiores aos existentes em outras cidades. Ou de hábitos culturais especificamente violentos.
3. Os linchamentos não são especificamente peri-urbanos e não têm sempre a ver com a intranquilidade social gerada pela criminalidade. Provavelmente, as maiores taxas linchatórias registam-se em meio rural e estão associadas a acusações de feitiçaria, como já mostrei neste diário. Por exemplo, em 2006, 16 mulheres foram linchadas no posto administrativo de Gonhane, distrito de Inhassunge, província da Zambézia. Entre 2002 e 2003, 18 pessoas foram linchadas no distrito de Muidumbe, província de Cabo delgado. Casos dramáticos que pouca repercussão tiveram na imprensa.
4. Os linchamentos peri-urbanos são, por agora, movimentos sociais não estruturados, anárquicos, mas que se podem tornar estruturados, organizados por grupos linchatórios específicos praticando uma justiça alternativa, sumária, definitiva, à margem da lei, com a sua própria lei.
5. Esses movimentos sociais justiceiros não estruturados (por agora) registam-se em áreas onde se concentram pessoas que vivem, no geral, com extremas dificuldades de vários tipos, tal como neste diário tenho procurado mostrar. Eles podem estruturar-se e tornar-se endémicos, tendo à cabeça pessoas ou grupos que não são, necessáriamente, oriundos das camadas sociais mais desfavorecidas. Podem, um dia, dar origem a grupos justiceiros perenes, alternativos às instâncias formais da justiça, operando em redes protectoras e justiceiras clientelistas, com regras muito próprias de gestão comunitária, incluindo regras financeiras (cobrança de impostos de protecção, por exemplo).
6. Os linchamentos registados desde 1990 no país e nas cidades referidas mais acima, pagam uma factura a múltiplos factores (entre os quais as consequências da gestão política autoritária e da guerra civil), factores que podem ter-se tornado mais concentrados, mais complexos (maiores taxas de desemprego e de criminalidade, por exemplo), factores que pequenos fenómenos precipitantes catapultaram e catapultam para o palco tenso da vida, factores que podem tornar-se ainda mais agudos. Aqui, o aleatório causal pode ser importante: os mesmos factores existentes em várias cidades podem gerar resultados diferentes, dependendo da existência e da força de factores precipitantes. Mas essa diversidade não pode, de forma alguma, fazer eclipsar quer a realidade social dos linchamentos, quer o facto de ocorrerem em zonas socialmente desfavorecidas (mesmo que nestas zonas habitem pessoas favorecidas).
4 comentários:
As questões que o prof coloca me parecem responder algumas que levantei no meu mundo onde procuro negar algumas das causas que são apontadas como estando por detrás dos linchamentos. Ao me referir às outras cidades por exemplo quero deixar claro que apesar de com certeza viverem dos mesmos problemas que os das cidades onde os linchamentos prevalecem, o fenómeno linchamento existindo não tem a mesma notoriedade.
Pode ser sim que que "haja linchamentos em outras cidades, em outras periferias urbanas" mas o simples facto de não ser com a mesma frequência e visibilidade já é suficiente para questionar.
Eu não diria que "estamos diante de coeficientes de irracionalidade, de violência, superiores aos existentes em outras cidades" mas não teria como negar que estamos diante de alguma especificidade que o meu curto raciocínio ainda não conseguiu ler se é que conseguirá um dia.
Que eu saiba por experiência própria(vida no campo), os linchamentos que "registam-se em meio rural e estão associadas a acusações de feitiçaria" não tem o mesmo carácter populista que caracteriza os urbanos apesar de ambos estarem cobertos por esta "fome de justiça". Uma característica que acho
interessante nos linchamentos rurais é o envolverem de forma restrita a vitima do feitiço e o feiticeiro dando um "ar de justiça" . Que fique claro que não defendo essa prática.
"Esses movimentos sociais justiceiros não estruturados (por agora) registam-se em áreas onde se concentram pessoas que vivem, no geral, com extremas dificuldades de vários tipos, tal como neste diário tenho procurado mostrar. Eles podem estruturar-se e tornar-se endémicos, tendo à cabeça pessoas ou grupos que não são, necessáriamente, oriundos das camadas sociais mais desfavorecidas. Podem, um dia, dar origem a grupos justiceiros perenes, alternativos às instâncias formais da justiça, operando em redes protectoras e justiceiras clientelistas, com regras muito próprias de gestão comunitária, incluindo regras financeiras (cobrança de impostos de protecção, por exemplo)"
Uma "profecia" apocalipticamente assustadora
Escute, há algo mais que acrescentei há momentos sobre linchamentos em zonas rurais. Esteja descansado que não estou a pensar que o Nelson defenda o que quer queseja, não sou como certos mandarins da praça. Abraço.
Caro Nelson, a minha experiência de vida nas zonas rurais leva-me a concordar contigo no facto de não serem usuais linchamentos lá. Pelo menos na forma como os conhecemos nas zonas urbanas, com participação de muitas pessoas, sobretudo mulheres e crianças. Existem, é verdade, crimes ligados a acusações de feitiçaria. Não são no entanto festivais linchatórios como os que conhecemos aqui nas cidades. Tomam a forma, geralmente, de crimes familiares, secretos, que podem mobilizar dois ou três irmãos (ou primos) para a prática do assassinato. Geralmente são mortas, quase que silenciosamente, pessoas idosas.
Iremos tomar em conta a sua observação na pesquisa. Obrigado.
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