23 março 2007

Em memória do escritor Fernando Pedro, uma das vítimas das explosões do paiol




Da Prof.ª Fátima Ribeiro recebi o texto que se segue, texto que faço também acompanhar com a minha imensa tristeza. Que a alma de Fernando repouse em paz e que a sua Família possa ter força para se reerguer.
EM MEMÓRIA DE FERNANDO PEDRO,
UMA DAS VÍTIMAS DAS EXPLOSÕES DO PAIOL
(Por Fátima Ribeiro)
Neste momento de luto e dor no nosso país, e em que tudo deve ser feito para apurarmos as responsabilidades do trágico acontecimento e tão inaceitável incúria continuada das explosões do paiol, venho com muita mágoa e profunda indignação recordar uma das muitas vítimas cuja memória tem de ser dignificada. É Fernando Pedro, que, regressado da República Democrática Alemã, onde trabalhou vários anos chefiando um dos grupos de jovens moçambicanos que ali se encontravam, foi funcionário e membro fundador da Associação Moçambicana da Língua Portuguesa (AMOLP) e escritor. Trabalhador dedicado, foram várias as profissões por que passou – entre outras, trabalhador portuário, motorista, secretário, assistente administrativo, e, finalmente, docente universitário. Num esforço contínuo para melhorar honestamente as suas condições de vida, frequentou como estudante-trabalhador o Instituto Superior Politécnico Universitário, onde concluiu há poucos meses atrás, com muito bons resultados, a sua licenciatura em Direito. Publicou os livros de crónicas e contos “Tantã, um tambor na Neve” e “Madgermanes na RDA - Vida Cotidiana”, ambos da Editora Ndjira, e ainda contos infantis. Fernando Pedro foi atingido por um dos projécteis em frente da sua residência em Mahlazine, de onde conseguiu retirar a tempo a sua família. O seu corpo ficou completamente despedaçado. Deixou mulher e três filhas, Marlene, Milena e Mirela, esta de apenas seis meses de idade.
Fátima Ribeiro

Em sua memória e homenagem aqui transcrevo um dos seus contos:

O Voto de Nhanengue

De merenda na neneca, Nhanengue caminha no árduo solo da planície. Aquela tortuosa caminhada é-lhe familiar.
Já curva, pesam naqueles ombros flácidos os anos de vivências com as obrigações do sistema africano. Não tivera oportunidade para a livre escolha das melhores coisas da vida: o marido fora-lhe imposto pelos familiares. Os filhos foram aparecendo, teimosamente, como gotas em torneira avariada e o número já não o conhece ao certo; espalhou-os pelo mundo onde se procura a vida e ela ficou esquecida pelas circunstâncias do tempo.
Andando a uma velocidade rápida, ruma à aldeia Munhembete, onde a primeira oportunidade de escolher algo a espera. Na ponta da capulana, está enrolado em forma de cilindro o cartão do eleitor, que é nele onde a velha tem concentrada a sua mente de fumo.
Em Magul, pelas fendas abertas no solo pelos tempos de seca, nasce agora um verde-vivo, gozando a paz dos homens. A cacimba pinga cristalina no solo, abanada pelo vento matinal.
A velhota recorda, agora, os seus tempos de juventude. Dos búfalos e das manadas enormes. Naquele tempo, os rapazes realizavam campeonatos de pancadaria. Os mais valentes tinham como troféu as moças mais belas da aldeia.
"Éramos tão importantes!" Falava baixinho.
A fila é longa junto à mesa eleitoral; Nhanengue vai perdendo forças, mas a esperança lhe faz aguentar. Está alegre e conta coisas dos tempos que já lá vão aos co-eleitores. Há festa em Munhembete!
Nhanengue arranja um canto e senta-se; tira um pedaço de mandioca da panelinha e começa a mastigar. Por causa da falta dos dentes, nota-se o trabalho que faz para comer; rumina lentamente, com o olhar fixo na lista dos candidatos colada num quadro próximo da mesa onde vai votar.
É a sua vez. Levanta-se vagarosamente e caminha a passos lentos rumo à mesa. O jovem, com o distintivo das eleições, molha o seu dedo com tinta vermelha. A velhota caminha em direcção ao quadro onde estão patentes as caras e os símbolos dos partidos. Uma lágrima teimosa rola pelo seu rosto. Pára diante do quadro e pinta com o dedo a cara de um dos candidatos.
- Não é aí vovó! - grita o presidente da mesa.
Nhanegue vira-se, lentamente, e fixa o olhar lacrimejante no homem que falara, Subitamente, roda sobre os calcanhares e cai pesadamente no solo.
Nhanengue morreu! Não teve a possibilidade de um dia escolher algo por vontade própria.

Junho de 1995
(in “Tantã, um tambor na neve”, Editora Ndjira, 1998)

5 comentários:

JCTivane disse...

Morreu gente com as nossas proprias armas.

Carlos Serra disse...

Singular expressão a sua, Tivane! Singular! Só que as armas apenas falam quando lhes damos ordens ou quando "esquecemos" que algo as pode fazer falar mesmo se e quando há gente à volta que não quer absolutamente essa fala.

chapa100 disse...

no meus pais o paiol namora o calor, e no amor saiem faiscas.

no meu pais a morte ginga, e nao é palhaco.

La Strega disse...

Uma amiga minha, a quem partilhava o nosso luto (quando ainda nao sabiamos quao grande seria o luto e a devastacao) disse-me, depois de eu lhe ter dito que era um crime ter-se um paiol em zona habitada:

'o crime e existir um paiol'.

Quando penso que o dia de amanha a dor vai passar, ela so aumenta. Ainda ha menos de um mes fui ver o filme 'Blood Diamond' e nao consegui ver as cenas de guerra e violencia porque me recordaram a nossa... E agora...

E um crime sim senhor... e um crime haver um paiol. E e um crime que a consideracao palas vidas dos cidadaos seja tao inexistente.

ninozaza disse...

O que mais me revolta é que todos nós daqui a pouco iremos esquecer e tudo voltará a normalidade. Nós é que devemos fazer a diferença, nenhum doador virá para ensinar-nos a exigir responsabilidades ao nosso governo. Chega de hipocrisia e tempo de fazermos uma lavagem cerebral e quem vai fazer essa lavagem não sou eu somos todos nós.
Os governantes deste país não podem brincar com as pessoas, e se desta vez todos juntos não fizermos nada, ai estaremos a fazer jus ao ditado que diz: "CADA POVO TEM OS GOVERNANTES QUE MERECE".