22 março 2007

A síndrome do Barão de Münchhausen em Moçambique (3)


"Há mortos que chegam adiantados à cerimónia" (As moscas, Jean-Paul Sartre)
Podemos analisar a revolução moçambicana (1975/1986, balizas frouxas, sem rigor) de muitas maneiras.
Aqui apenas tenho uma intenção, breve e defeituosa: a de profetizá-la à minha maneira. Sabem bem como, por vezes, não é o futuro que tem de ser profetizado, mas o passado.
O que foi, em essência, essa revolução, esse samorismo?
Foi, fundamentalmente, uma urgência. Urgência? Sim. Urgência de quê? De mudança. Um realinhar com outras épocas de mudança que, periodicamente, percorrem a história da humanidade.
Sob a batuta de uma crítica cerrada do passado e, portanto, dos hábitos de pensamento e de vida herdados, a ideia era atingir um futuro diferente, um futuro milenarista que era suposto ser mais digno, mais igualitário. E para se ter um futuro diferente, era preciso mudar. Mudar mesmo a mudança, de forma a que, ao fim da estrada dos planos quinquenais, uma vida diferente surgisse.
Hábitos novos, palavras novas, decisões novas, crenças novas, pensamentos diferentes, revolução messiânica da emoção cujos mentores desejavam trazer aos Moçambicanos o reino da razão final e igualitária, tudo isso entrava num rolo compressor que as reuniões permanentes, os comícios, procuravam enraizar.
Era possível mudar, era possível mudar até o futuro ainda por chegar, era completamente possível afastar as moscas do passado de Argos, Orestes também podia ser deus e vencer o Júpiter do passado.
A apetência de mudança samoriana inscreveu-se num novo tipo de leis: as leis da conjuntura, as leis da oralidade, as leis do arbitrário, leis que dispensavam advogados.
A mudança é vertigem e vertigem exige arbitrário. Por isso o samorismo é, também, intrinsecamente, o reino do arbitrário. A lei escrita é lenta, a lei oral é rápida. Os resultados eram menos importantes do que a cadência rápida da mudança em si, no desejo frenético de atingir o céu do bem-estar. Necessidade de mudar era a lei que meia dúzia das palavras das "estruturas" rapidamente punham em movimento tumultuoso e inexorável e que os campos de reeducação e os fuzilamentos extremavam face às nervuras mais espessas da resistência ou assim concebida.
Mas para mudar era necessário que o povo passasse sacrifícios. O ritmo do capitalismo morria nas modestas e quase imóveis portas das cooperativas de consumo, no racionamento, na rarefacção dos produtos na lojas. Sofre hoje, para teres amanhã o reino da abundância, era o lema.
Quando a mudança foi chocando com a renitência da recusa (ela própria também mudada, mais inteligente na sua agressividade) simbolizada no xiconhoca, no candongueiro, no inimigo multidimensional, passado, presente e futuro, surgiram as ofensivas políticas e organizacionais destinadas a corrigir os maus percursos e a punir os recalcitrantes. Toda a voz diferente era imediatamente recusada e condenada. Mas as resistência sempre encontram outras veredas.
As mentes são perversas, amam sentar-se no passado ou buscar futuros de rosto diferente. Por isso, tal como na peça de teatro de Sartre, se há mortos que chegam adiantados à cerimónia, que renascem para estragar o futuro, a crença, para questionar a subversão trazida pelo novo, também há vivos que têm vontades singulares, resistentes, tenazes.
Daí a recauchutagem acrescentada do novo decisório, o retomar da báscula revolucionária. As visitas de surpresa, a sirene estridente, a chegada não prevista, a agitação irrompida de novo nos hábitos, não importa onde, fábrica ou escola, hospital ou quartel: era a revolução motorizada, o futuro reaceso, o sinal de alarme agitando a preguiça dos costumes ou a intemperança dos não- convencidos.
A crença era, afinal, vista da varanda de hoje (na de ontem era, claro, ao contrário), a de que corrigindo a superfície dos fenómenos, o seu interior seria também corrigido. Não é a superfície apenas uma parte do corpo da vida? Não é tudo dialéctico?

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