04 maio 2006

O capital mágico

Dificilmente cada um de nós escapa, na inteligência espontânea das coisas, à busca do absoluto e das forças intencionais. O chamado azar mais não é do que uma intenção esvaziada de seu conteúdo. Peguemos nos dados, interroguemo-nos sobre a nossa confiança neste ou naquelo número (por que temos mais fé num número colocado, por exemplo, em quatro faces do que no colocado em duas?), na «sorte» que sentimos quando um dos nossos desejos se realiza, perscrutemos a atribuição de uma intenção ao que nos acontece imprevistamente, etc. Vamos na Avenida Eduardo Mondlane, um carro vai de encontro a nós, ficamos feridos: quantos de nós se recusariam a ver nisso não o produto de uma causa ou de um conjunto de causas fortuitas (ou, para dizer como Cournot, «o reencontro de séries causais diferentes»), mas a expressão do azar, a misteriosa sombra de uma intenção subreptícia que nos teria escolhido precisamente a nós e não a outros? Existe, portanto, uma espécie de capital mágico em todos nós, sempre pronto a vir à superfície à mais pequena oportunidade. Veja, por exemplo, Bergson, Henri, Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Presses Universitaires de France, 1967, 164e éd., pp.152-155; Hume, David, L'entendement, Traité de la nature humaine, Livre I et Appendice. Paris: GF-Flammarion, 1995, pp.195-200; Simmel, Georg, Philosophie de l'argent. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p.85. Mas podemos desenvolver um bocado mais este tema. Assim, os procedimentos mágicos dos nossos pescadores destinados a assegurar a fertilidade do mar, por exemplo, não são, na sua essência, mais irracionais ou menos inteligíveis do que os procedimentos técnicos usados pelos biólogos para o mesmo efeito. Pescadores e biólogos acreditam na eficácia dos seus métodos mesmo se e quando eles falham, comunidades científicas defendem intolerantemente os seus paradigmas mesmo se e quando eles falham. Por exemplo, hoje ainda muitos de nós acreditam que novos sistemas sociais podem substituir os existentes, que com alguma sorte podemos ganhar na lotaria, por todo o mundo representações colectivas de natureza religiosa coabitam com níveis industrializados avançados, etc. Estes textos que escrevo são a tradução de um processo epistémico que tende à crença, por exemplo, de que sou ou de que serei capaz de compreender os actores de determinados fenómenos, mais particularmente de que sou ou de que serei capaz de encontrar o seu fio de Ariadne. Se essas crenças me faltassem,este trabalho seria certamente inviável. Ver, entretanto, Durkheim, Émile, Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Librairie Générale Française, 1991, pp.77-78, 725-728. No tocante à formação, preservação e ruptura dos paradigmas científicos, ver Kuhn, Thomas S., La structure des révolutions scientifiques. Paris: Flammarion, 1983, passim.

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