Século XIX: nos latifundia do vale do Zambeze, convencionalmente chamados prazos[1], a morte do muzungo ou da sinhára (ou da dona)[2] dava azo a uma situação anómica generalizada. Os cativos do falecido ou da falecida provocavam então desmandos vários, obrigando os camponeses locais e das vizinhanças a fazer kolira. Mas não só: os comerciantes de passagem eram assaltados e as suas mercadorias roubadas[3].
O kolira é parente dos fenómenos de agitação social provocados pela falta de chuvas, pelas epidemias, pelas inundações, pelas crises políticas, etc. Quando assim acontece, imediatamente as instituições normais enfraquecem, gerando-se uma indiferenciação social e cultural generalizada com ruptura das hierarquias, das funções convencionais e dos valores tradicionais. Neste eclipse do social, cada um está contra o outro, todos estão contra todos, novos contra velhos, súbditos contra chefes, cada um quer o que o outro quer, nada é respeitado, o profano confunde-se com o sagrado, a vida com a morte. A saída da crise é mimeticamente sentida e exigida. Camponeses, passantes, comerciantes tornam-se os bodes expiatórios. Seguem-se a catarse social, a unanimidade violenta, a destruição e a morte das vítimas expiatórias. O capital de ódio e de desconfiança mútua uniformiza-se e é polarizado, hipostasiado na vítima expiatória ou nas vítimas expiatórias. Efectuada a destruição, feita a pilhagem, processado o linchamento colectivo e, finalmente, eleito o novo muzungo ou a nova sinhára, as instituições, as hierarquias e as diferenças sociais são repostas[4].
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[1]Latifundia é, certamente, um termo inapropriado. Mas ele parece-me apesar de tudo mais apropriado do que o familiar prazos, termo jurídico. Seja como for, não é minha intenção aprofundar o tema aqui e agora.
[2]Sinhára é corruptela de senhora. Recuso aqui usar essoutro termo familiar, prazeiros, mas que é rigorosamente errado e, além do mais, de um deplorável mau gosto.
[3]Kolira=chorar; na terminologia portuguesa, choriro.Veja, por exemplo, Newitt, M.D.D., Portuguese Settlement on the Zambesi, Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa. London: Longman,1973, pp.194, 238;__, A History of Mozambique. London: Hurst&Company, 1995, p.235.
[4]Veja, para a grelha teórica, Girard, René, La violence et le sacré. Paris: Éditions Bernard Grasset,1972, pp.63-178; __, Des choses cachées depuis la fondation du monde. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1978, pp.9-68, 146-211, 4O1-421;__, Le bouc émissaire. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle,1982, passim.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
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