Nampula, 10/08/2001. Hoje é sexta-feira. Dia da esmola. A cidade acaba de despertar, é uma manhã igual a tantas outras. Os cidadãos movem-se em massa compacta no mesmo sentido, das palhotas para a cidade do cimento. Eu vou com a massa, faço parte dela, sou apenas uma molécula que se move com a maré para depois tornar a vazar.
Segui um dos grupos e à sombra de uma grande mangueira, em frente ao edifício do Pavilhão dos Desportos, ele juntou-se a outros grupos. O que aí vi foi extraordinário: redistribuíram os produtos recebidos durante a manhã. Isto é, os que tiveram mais têm o dever de partilhar com os que quase nada receberam. Não tive como disfarçar para me aproximar deles e escutar o que diziam. Por volta das 14 horas começaram a abandonar o local em pequenos grupos, como sempre, tal como haviam chegado.(…) Ao dobrar a esquina da Avenida Kankomba encontro um velho empurrando um carrinho de rodas no qual vai outro velho, o que empurra tem uma sotaina que talvez tenha sido branca, usa jeans, tem um cofió branco na cabeça e calça sapatos ve-lhos e esburacados, os dedos dos pés estão à vista. Não duvidei de que aquela roupa foi apanhada num fardo das "calamidades". O velho que estava sentado na cadeira de rodas tinha uma capulana com a inscrição "Vota Chissano" e um par de óculos escuros como se tivesse sido operado às cataratas.Uns passos à minha frente surge uma mulher num grupo de esmoleiros, tem um saco plástico "rambo" azul, uma fita branca no cabelo e no pescoço ostenta um amuleto (hirisse) para protecção contra os shetwanes (maus espíritos). A mulher foi juntar-se a outros dois esmoleiros, estão perto de uma loja, presente está também um velho que anda de cócoras, com um saco plástico na cabeça.
Sigo em frente, um homem sentado estende-me a mão, diz "Papá!", não lhe faço caso, o homem tem uma bengala e uma Bíblia usada. Paro para falar com ele, não responde "Bom dia!", mas olha para mim com ar admirado. É que ninguém se aproxima deste tipo de gente e o que acabo de fazer é, realmente, uma grande novidade para ele. Chama-se E.A., de 22 anos.
Aquimo: Por que pede esmola só às sextas-feiras?
E.A.: Não, eu não peço só às sextas-feiras, eu peço para ter qualquer coisa que aumente o meu negócio de petróleo e cigarro, lá no bairro.
Aquimo: Como acha que está hoje a vida, comparando com o passado?
E.A.: Hoje a vida está cada vez mais complicada. Repara que a gente caminha quase toda a cidade e não apanha nada. Antes os monhés davam qualquer coisa. Agora que vieram os negros, tudo está complicado. Antes não havia pão, havia dinheiro e roupa. Agora, é só pão.
Aquimo: A quem responsabiliza pela situação?
E.A.: A vida que vivo e vivem os outros, responsabilizo o Governo. Para mim, o Governo não nos organiza.
Depois conversei com um senhor idoso, de 70 anos de idade e que durante muitos anos foi estivador no porto da Beira. Chama-se M.C.
Aquimo: Por que pede esmola?
M. C.: Peço esmola porque já não aguento. Quando aguentava não fazia isto.
Aquimo: Por que pede apenas à sexta-feira?
M.C.: Não é bem assim, eu peço qualquer dia. O que acontece é que só na sexta-feira é que há oferta. Nos outros dias os monhés recusam.
Aquimo: Como era a vida na cidade de Nampula no tempo colonial, comparada com a de agora?
M.C.: No tempo colonial nós nos sentíamos bem. Os preços eram baixos, agora repare que me deste estes 500,00 Mts e não posso comprar nada se não apenas um cigarro. Nos nossos dias há estrangeiros que nos compram arroz, mas os nossos compatriotas não nos precisam. Se não fossem os estrangeiros nós estávamos mal.
Aquimo: A quem responsabiliza pela situação que os pedintes vivem?
M.C.: Eu pessoalmente responsabilizo a Deus pela situação que vivo, porque eu estou doente. Só que há os que fazem de propósito, como pode ver, são tantas mulheres em condições de viver em sua casa, com crianças em idade escolar.
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Extracto do diário de campo de Lopes Aquimo, um dos meus investigadores na cidade de Nampula trabalhando sobre precariedade social (2001)
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
1 comentário:
Quando se pede esmola desta maneira alguma coisa está mal na sociedade.
Jonas
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