Os seres humanos dispõem de capacidades, de chances, de recursos, de trunfos, de «fontes de incerteza»[1] desiguais.
Portanto, para enunciarmos um truísmo, nem todos podem mandar.
Em todas as sociedades e em todas as épocas históricas, apenas alguns têm podido constranger a conduta de muitos[2].
O que significa constranger? Significa basicamente que o actor A, por exemplo, é capaz de conseguir que o actor B faça o que ele quer que ele faça. Para que o actor B faça o que o actor A quer que ele faça, vários fenómenos podem concorrer em simultâneo nesse sentido, a saber: meios de constrangimento físicos, materiais, adminitrativos[3], etc.
Mas, condição básica para a aquiescência política, importa que exista uma espécie de capital de obediência[4] nos seres humanos, uma espécie a-histórica de estoque do sim, produto potencial dos sistemas de interiorização do princípio de respeito vigentes em todas as sociedades.
A esse respeito, Bertrand de Jouvenel falou em «hábito da espécie» e na «miraculosa obediência dos seres humanos». E acrescentou: « Dizem-nos «Vem!» e nós vimos. Dizem-nos «Vai!» e nós vamos. Obedecemos ao perceptor, ao polícia, ao ajudante.»[5] Está aí um fenómeno que Espinosa veria como tradução da necessidade de o homem-médio «conservar o seu ser»[6] e que, no século XVI, La Boétie atribuiu ao costume, apelidando-o de «servidão voluntária»[7]. É certamente em linha com o mistério da obediência civil que, numa formulação rude e impressionista, Kant escreveu no século XVIII que «o homem é um animal que, a partir do momento em que vive entre outros indivíduos da mesma espécie, tem necessidade de um senhor[8]. E, ainda, de uma forma emblemática, Godelier observou, numa fórmula provocadora, que sendo todo o «poder de dominação» composto da violência e do consentimento, «a força determinante não é a violência dos dominantes, mas o consentimento dos dominados à dominação»[9].
E, certamente, não seria descabido encontrar nas pessoas, sobretudo quando empobrecidas, uma especial propensão a compensar ou a sobrecompensar a inferioridade social com a aceitação da ordem dos fortes e/ou com a busca reverencial de um salvador[10].
É como se para se compreender essa «servidão voluntária», este «dilema da obediência»[11], enfim, na clássica formulação platónica, esse Senhor que habita em nós[12], fosse necessário haver uma espécie de força propulsora inicial da qual restasse, depois, irremediável, um aguilhão. Esse é o quadro proposto por Elias Canneti nesta admirável passagem prenhe de irremediabilidade: «Toda a ordem é composta de uma impulsão e de um aguilhão. A impulsão constrange quem a recebe a executá-la em conformidade. O aguilhão resta no fundo daquele que executa a ordem. Quando as ordens funcionam normalmente, como se espera que assim seja, o aguilhão resta invisível[...]. Mas o aguilhão afunda-se profundamente na pessoa que executou a ordem e aí permanece sem alteração. Não há realidade física mais imutável. O conteúdo na ordem persiste no aguilhão; a sua força, o seu alcance, os seus limites, tudo isso foi prefigurado no instante mesmo em que a ordem foi dada. Anos inteiros podem passar, mesmo dezenas de anos, antes que esta parte absorvida e armazenada da ordem, a sua imagem exacta em miniatura, reapareça»[13].
Na realidade, o constrangimento remete fundamentalmente para a ordem da força, para os fenómenos que, conjugados, fazem o espectáculo quotidiano do temor instituído.
O constrangimento reenvia, portanto, para o aguilhão canettiano e, em última análise, para a clássica relação hegeliana senhor/escravo, na qual a busca do reconhecimento de si e a preservação da vida pode levar o escravo a pôr de lado a liberdade( e, nos termos hegelianos, a «imediatidade») e a decidir sujeitar-se ao senhor[14].
Porém, será que a relação senhor/escravo tem apenas a ver com o impulso do «senhor», com a força deste? Com efeito, o problema pode ser mais complexo do que aparenta. Como defendeu Manès Sperber, a tirania é menos o produto do «senhor» do que o produto do «escravo», é menos aquele que a fabrica do que este[15]. Libertarmo-nos da tirania não é um dado da natureza, não é um estado adquirido: ela é, pelo contrário, conquistada simultaneamente contra a natureza e contra o nosso próprio corpo (tenha-se em conta, por exemplo, a sujeição permanente a que se encontra votada a criança)[16].
É por isso que se deve distinguir dominação de constrangimento.
Se este reenvia para a força, aquela fá-lo para a aceitação do constrangimento, para, digamos, a disposição de aceitar a relação assimétrica de poder. É weberiana a formulação da dominação como aceitação da ordem[17].
Considero que a autoridade é uma modalidade particular da dominação, com sentido idêntico à ou vizinho da hegemonia gramsciana. Eventualmente o mais impalpável dos fenómenos políticos aqui em análise, como defendia H. Arendt, a autoridade exclui a violência, o constrangimento e a própria persuasão. Ela reenvia para o ascendente de alguém, para o seu prestígio (a autoridade de um pai, de um professor, de uma universidade, de um intelectual, etc.). O termo pode, ainda, porém, designar, no seu sentido menos nobre, um eixo institucional pesando com toda a sua força concentrada (a «autoridade da polícia», por exemplo). Mas convém guardar o sentido genuíno do termo para uma aceitação consciente do prestígio, da força moral, da competência, etc., de alguém ou de uma instituição (Os piores inimigos da autoridade são o desprezo e o riso[18]).
Mas existe um outro mecanismo angular do político, o qual assume uma particular relevância hoje, neste mundo onde a desobediência civil aumenta[19] e onde, portanto, não pode excluir-se jamais o recurso ao cesarismo (momento, como escrevia Gramsci, no qual as forças políticas em conflito se equilibram de «maneira catastrófica»[20]): a estratégia.
O que é estratégia? Nos termos clausewitianos, pode dizer-se que é um acto de violência destinado a constranger o adversário a sujeitar-se à nossa vontade[21]. Portanto, digamos que a estratégia é um conjunto de cálculos ganhantes. Nos termos de Charnay, a estratégia é a arte polimorfa da coerção e da anti-coerção, da persuasão e da força, do respeito e da violação. Ela supõe a existência de um Outro que importa se não vencer, pelo menos tornar favorável aos nossos desígnios[22].
Tornar alguém politicamente favorável aos nossos desígnios significa também, do ponto de vista do príncipe[23], fazer como vem na cartilha maquiaveliana, a saber: manipular e entorpecer os espíritos, levá-los à obediência[24] e, especialmente, ao conformismo. Por outras palavras, fazer de maneira que «os cidadãos tenham necessidade do Estado»[25] e com isso se conformem, especialmente se houver a arte de entreter os súbditos em festas e em jogos[26] e, como defendia o Inquisidor-Mor de Dostoievski, de lhes dar o pão pelo qual trocam a liberdade[27].
Podem ser consideradas, numa perspectiva balanderiana, duas formas de aceitação da ou de consentimento à ordem vigente: a activa e a passiva. Na primeira, existe um propósito deliberado de servir uma dada ordem social, face aos benefícios daí advindos, ainda que esta atitude seja muitas vezes ambígua, de duplo jogo. Na segunda, faz-se prova de indiferença, deixa-se que as coisas fiquem como estão, num estado de espírito que pode lembrar a relação hegeliana senhor/escravo[28].
Em qualquer relação política tem de haver e há um mínimo de «predisposição para obedecer».
Mas a questão fundamental para os príncipes não está aí, a questão fundamental está em como normalizar, em como rotinizar essa predisposição, em como naturalizá-la, em como torná-la um exercício digamos que sagrado, moralmente obrigatório, moralmente condicionante. Por isso em todas as sociedades existem normas muito severas no que concerne aos conteúdos e processos da educação[29]. Por isso, também, certos autores incluem o sagrado no político e falam de rituais e de liturgias políticas[30].
Mas não é possível analisar a relação política apenas num quadro estreito onde a força imperaria casada com o conformismo, com a estratégia ao serviço de ambos.
Ainda que esse quadro de servilidade não deva ser substimado[31], não deve, porém, ser visto como constituindo a linha dorsal da relação política. Já propus que lá onde a relação está saturada de força não existe relação política propriamente dita. Importa, portanto, encontrar outras veredas de análise.
Nesse sentido, uma fórmula, a espinosiana, continua, creio, a ser ainda hoje actual e pertinente: jamais o espírito de um homem tombará na absoluta dependência de quem quer que seja. Se fosse tão fácil comandar os espíritos como se comandam as línguas, escreveu ele, jamais os governos teriam necessidade de recorrer à violência[32].
É aqui que importa ter em conta a «desforra dos dominados», como diria Michel de Certeau. Porque, afinal, existem, também, táctica e estratégias de dominados.
A resistência, banal fenómeno que é teoricamente possível fazer sair da família mecânica newtoniana da força e da contra-força, é uma parte imanente da relação política, digamos que a sua mão invisível, mas persistente.
Lá onde tem curso uma relação política[33], existe uma resistência, um inconformismo, uma aspiração geral ao não obedecer e, quero crer que em simultâneo, um desejo específico de um «sempre mais» redistribuidor por parte dos príncipes. Intransitividade da liberdade[34], diria Foucault[35]. Porque, para referir os termos maquiavelianos, importa ter sempre em conta os dois «humores opostos»: se nenhum povo gosta de ser comandado nem oprimido, muitos príncipes, se não todos, gostam justamente de comandar e de oprimir os povos[36].
Portanto, a relação política reveste a real face de um Jano ou, se preferirdes, é a tradução fiel de uma espécie de complexo de Antígona, a saber: se somos moralmente obrigados a obedecer, não somos menos obrigados a desobedecer quando a nossa consciência a isso nos obriga. Por outras palavras, há em todos nós um fundo libertário hobbesiano[37] sempre pronto à acção[38].
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[1]Este é um dos conceitos fundamentais de Crozier. Toda a organização é permanentemente sujeita a «massas de incerteza» muito elevadas (técnicas, comerciais, humanas, financeiras, etc.). Quem melhor controlar essas fontes através da competência e das redes de relações/comunicações, deterá o maior recurso de poder - veja Crozier, Michel, Crozier et Friedberg, Erhard, L'acteur et le système, Les contraintes de l'action collective. Paris: Éditions du Seuil, pp.23, 30, 72. Também, Bernoux, Philippe, La sociologie des organisations. Paris: Seuil/Essais, 1985, p. 167.
[2]Mas esse quadro não deve ser visto como um modelo homeostático, regulado para sempre. As relações de poder são processuais e embutidas na luta.
[3]Existe em Simmel uma importante reserva contra a imprecisão no uso desse termo. Assim, ele sustentou num dos seus livros que o verdadeiro constrangimento é aquele que se exerce pela violência física ou pela hipnose e que nos outros casos nada nem ninguém pode obrigar-nos a fazer o que quer que seja, uma vez que podemos simplesmente... não o fazer. Lá onde existe esta possibilidade, não pode falar-se em constrangimento. Portanto, dizer que sou «constrangido» a não fazer algo para evitar uma punição, é falso, dado que posso decidir correr as consequências da execução do acto - veja Simmel, Georg, Philosophie de l´argent. Paris: PUF, 1987, pp.502-503.
[4]Sei bem quão perturbadora é esta expressão.
[5]Jouvenel, Bertrand de, Du pouvoir, Histoire naturelle de sa croissance. Paris: Hachette/ Pluriel, 1972, pp.46-47, 50.
[6]Spinoza, Traité de l'autorité politique. Paris: Gallimard, 1978, p.99.
[7]La Boétie, Étienne de, De la servitude volontaire ou contr'un suivi de sa réfutation par Henri de Mesmes suivi de Mémoire touchant l'édit de janvier 1562. Paris: Tel/ Gallimard, 1993, p.102.
[8]Kant, Emmanuel, Oposcules sur l'histoire. Paris: GF-Flammarion, 1990, p.77.
[9]Godelier, Maurice, Les processus de formation de l'État, in Kazancigil, Ali( dir), L'État au Pluriel, Perspectives de Sociologie Historique. Paris: Economica, UNESCO, 1985, pp.21-22.
[10]A propósito do conceitos de compensação e supercompensação, ver Adler, Alfred, Connaissance de l'homme, Étude de caractérologie individuelle. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1966, pp. 65-72. Para uma crítica a este tipo de causas, veja Beauvoir, Simone de, O Pensamento da Direita, Hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, pp. 16-17 e passim.
[11]Veja, a propósito, o admirável e perturbante livro de Milgram, Stanley, Soumission à l'autorité, Un point de vue expérimental. Paris: Calmann-Lévy, 1974, pp.17-29.
[12]Platon, La République. Paris: GF-Flammarion, 1966, p. 354.
[13]Canetti, Elias, Masse et puissance. Paris: Tell/Gallimard, 1960, p. 324.
[14]Veja, a propósito, Hegel, G. W. F., Précis de l'Encyclopédie des Sciences Philosophiques, La Logique, La Philosophie de la Nature, La Philosophie de l' Esprit. Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, pp. 242-243.
[15]Sperber, Manès, Psychologie du pouvoir. Paris: Éditions Odile Jacob, 1995, p.19 e passim.
[16]ibid., pp.187-189.
[17]Weber, Max, Économie et société, Les catégories de la sociologie/I, pp. 95, 285.
[18]Arendt, Hannah, Du mensonge à la violence. Paris: Calmann-Lévy, 1972, pp.145-146; também, Russ, Jacqueline, Les théories du pouvoir. Paris: Librarie Général Française/Le Livre de Poche, 1994, pp.38-39.
[19]Arendt, Hannah, Du mensonge..., op.cit., pp.53-104.
[20]«Pode dizer-se que o cesarismo exprime uma situação em que as forças em luta se equilibram de uma maneira catastrófica, isto é se equilibram de uma maneira em que a continuação da luta não pode concluir-se senão com a destruição recíproca. Quando a força progressiva A luta com força retrógada B, pode acontecer não só que A vença B ou B vença A, mas pode acontecer também que não vença nem A nem B, mas que desfaleçam reciprocamente e intervenha do exterior uma terceira força sujeitando o que resta de A e de B.» - Gramsci, Antonio, Obras Escolhidas. Lisboa: Estampa, 11974, volume 1, pp.348-355.
[21]Clausewitz, Arte e Ciência da Guerra. Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1973, p.12.
[22]Charnay, Jean-Paul, Critique de la stratégie. Paris: L'Herne, 1990, p.76.
[23]Este termo não possui, aqui, qualquer associação directa com os significados correntes( por exemplo, título de nobreza, soberano ou membro de uma família real, etc.). Ele tem, antes, uma ressonância maquiaveliana e joga, de alguma maneira, com a figura «intemporal» e manipuladora do «senhor».
[24]Machiavel, Le Prince suivi d'extraits des Oeuvres politiques et d'un choix des Lettres familières. Paris: Gallimard, 1980, p.55 e passim.
[25]ibid. p.78.
[26]ibid., p.131.
[27]Dostoievski, Os Irmãos Karamazov. Lisboa: Arcádia, 1977, pp. 259-277.
[28]Balandier, Georges, Sens et puissance, Les dynamiques sociales. Paris: PUF, 1971, 3e éd, p. 162.
[29]Como sabeis, o ensino é hoje, especialmente na esteira de um Pierre Bourdieu e de um Passeron, por exemplo, cada vez mais interpretado como um fenómeno político imediato, destinado a reproduzir uma determinada ordem social.
[30]Veja Rivière, Claude, Les liturgies politiques. Paris: PUF, 1988.
[31]Face ao desgaste da "ordem" em Moçambique, à erosão das "obediências adquiridas", tenham-se em conta os esforços estratégicos governamentais para encontrar fórmulas disciplinares e conformadoras eficientes. A este propósito, a apologia diritâmbica dos «chefes tradicionais» é exemplar.
[32]Spinoza, Traité des autorités théologique et politique. Paris: Gallimard, 1954, p.309.
[33]Dizer assim as coisas é enunciar um truísmo. Em que casos, na verdade, essa relação não existiria?
[34]Este é um termo carregado de ambiguidade e vale a pena, em meu entender, deixar aqui algumas observações. Escreveu Simmel, por exemplo: «(...); se esta [liberdade] liberta de qualquer coisa, é ao mesmo tempo liberdade para qualquer coisa. Fenómenos observados nos domínios mais variados da vida confirmam-no. Quando na vida política um partido reclama ou proclama a liberdade, não se trata na realidade da liberdade ela-mesma, mas destes ganhos positivos, aumento do poder, extensão, que lhes eram até então interditos. A «liberdade» que a Revolução Francesa proporcionou ao Terceiro Estado significava que um quarto estado estava prestes a desenvolver-se, que o Terceiro podia doravante «livremente» fazer trabalhar para si. A liberdade da Igreja significa directamente a extensão da sua esfera de influência; a sua «liberdade de ensinar», por exemplo, significa que ela fornece ao Estado cidadãos que são marcados por ela e sob sua influência(...)» - Simmel, Georg, Philosophie..., op.cit., pp.506-507. Por outro lado, seria preciso estudarmos o capitalismo como sistema cultural no qual liberdade quer dizer, entre outras coisas, segundo C.McAll, «(...) a liberdade de se apropriar das terras e das matérias-primas, e a liberdade de dispor dos seus empregados à sua vontade, sendo dado que- durante as horas de trabalho - os empregados são supostos «pertencerem» ao seu empregador» - veja McAll, Christopher, Capitalisme et culture, in Lavallée, M., Ouellet, F., Larose, F., Identité, Culture et Changement Social. Paris: L'Harmattan, 1991, p.41.
[35]Foucault, Michel, Le Pouvoir, comment s'exerce-t-il?, in Dreyfus, Hubert et Rabinow, Michel, Michel Foucault, Un parcours philosophique. Paris: Gallimard, 1984, p. 315.
[36]Machiavel, Le Prince..., op.cit., p.74.
[37]Ver Hobbes, Thomas, Léviathan, Traité de la matière, de la forme et du pouvoir de la république ecclésiastique et civile. Paris: Éditions Sirey, 1971, 1983, 3e tirage, pp.121-127;__, Le citoyen ou les fondements de la politique. Paris: GF-Flammarion, 1982, pp. 67-100.
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