03 março 2007

Sobre curandeiros e igrejas evangélico-salvadoras


O caso do Sr. Viriato Nhassengo, neste diário reportado em entrada recente, que ficou sem uma casa para assegurar a resolução de problemas sociais através da Igreja Universal do Reino de Deus, merece uma reflexão.
E essa reflexão encontra em Marx, creio, um bom ponto de começo.
"A angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia (…). Exigir que [o povo] renuncie às ilusões é exigir que ele renuncie a uma situação que precisa de ilusões."
Essa famosa frase de Marx permite-me introduzir o tema da proliferação de curandeiros e de igrejas evangélico-salvadoras no país, proliferação frequentemente referida neste diário.
Com tanta pobreza multilateral, lá onde a insegurança é permanente, onde cada amanhã é uma incerteza, não surpreende que as pessoas tenham tanta fé em forças que os transcendem. Os curandeiros e os pastores das igrejas evangélico-salvadoras (sobretudo destas) tornaram-se os seus intelectuais orgânicos, aqueles que contribuem para a hegemonia do grupo social dominante através de um consenso plural (calibrado pelo medo, pelo amortecimento que a contra-sociedade representa e pela promessa de um além diferente), que lhes pedem que se conformem com as relações sociais existentes para que, um dia, espíritos e Deus os recebam e os redignifiquem.
Pretender que não tenham ilusões é exigir que renunciem a uma situação que delas carece.
A condição social daqueles para quem cada dia é um ponto de interrogação torna-os prisioneiros irremediáveis de um duplo constrangimento: por um lado, a vulnerabilidade perante os fenómenos da natureza e a insegurança do seu modo de vida catapulta-os para a interpretação emocional e antropomórfica da vida; por outro, esta visão reforça a vulnerabilidade e a insegurança.
Os milhares de pessoas, regra geral de origem humilde, que consultam curandeiros e/ou que acorrem aos cultos esperando que os espíritos e Deus os ajude a libertarem-se dos flagelos que as perturbam, criam novos espaços identitários, encontram nos curandeiros e nas igrejas um sentido para a vida, nelas recebem solidariedade, aí é-lhes assegurada uma recompensa extra-humana para os males terrenos caso creiam sem reservas na tutela espírita ou na justiça divina.
Mas no preciso momento em que isso acontece, ocorre a evicção completa do projecto de modificação real das condições de vida.
Com efeito, ao aceitarem que todos os males são obra dos "maus espíritos" (Igrejas Zione, curandeiros) ou do "diabo" (IURD), as pessoas acabam por ver transferida (com a sua adesão, afinal) para entidades sobre-humanas a responsabilidade social na génese da miséria e da violência. Perdido o sentido crítico, trocado que é pelo sentido das crenças, eles parecem evacuar o desafio humano de uma transformação social genuína.
Aqui temos, afinal, um exercício de despersonalização trágica.
Despersonalização tão mais trágica quanto o caminho para o céu tem de passar, como na IURD, pela exigência constante de dízimos em meticais ou em dólares.
Acresce que as ameaças sistematicamente feitas aos crentes no sentido de que o inferno os espera caso caso não entreguem o dízimo, só pode concorrer para ampliar a cultura de medo e de abdicação herdada dos anos de guerra civil.
Ora, ainda não fizemos em Moçambique uma avaliação dos custos sociais e humanos de acção dos curandeiros (a quem chamamos oficialmente médicos tradicionais) e das igrejas de salvação tipo IURD.
Não sabemos se, quando e quantas pessoas morrem com o receituário dos curandeiros.
Não sabemos quantas pessoas entram em desgraça quando a procuram eliminar recorrendo às igrejas salvacionistas.
À sombra da democracia podem, frequentemente, registar-se actos profundamente anti-democráticos e lesivos.
Actos que podem gerar a morte, moral e real.
Estará o nosso Estado disposto a estudar um dia esse fenómeno?

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