18 abril 2006

Nova curta sociologia das cidades moçambicanas

As cidades moçambicanas são uma subversão permanente da visão de uma África natural, tradicionalizada, metida para sempre no frigorífico da história (1). De facto, elas são constantemente ruralizadas, com reagrupamentos simbólicos e mestiçados abundantes, numa cultura de bricolagem ainda mal conhecida (2). É nelas onde os actores estão num vaivém incessante e contraditório entre o mundo de fora e o mundo de dentro: os meios de comunicação e o cosmopolitismo urbano tornam-nos cidadãos do planeta e dos seus heróis, mas a procura de pontos de referência e as dificuldades de sobrevivência social fá-los reciclar e re-interpretar a região de origem, recriar a solidariedade étnica (o "somos todos primos" dos mercados e dos comes-e-bebes informais, por exemplo) e reciclar os heróis epónimos (3). Estão cada vez mais na economia-mundo sem poderem abandonar a economia local e vice-versa: é este o seu double bind. Quanto mais dificuldades sociais no mundo de fora, mais estreitos os laços e as fronteiras do mundo de dentro. Se por um lado não existem já verdadeiramente nem tradição nem modernidade, por outro vai-se àquela para a modernizar e a esta para a tradicionalizar consoante os momentos, os processos e as cristas das tensões sociais. Esgrime-se a etnicidade quando estão em causa os recursos de poder locais, o racismo defensivo quando estão em causa os recursos de poder dos estrangeiros. O presente é encarado pelos olhos do passado, o passado pelos olhos do presente. A aspirina casa-se com a efusão do curandeiro. Este é, afinal, um mundo mestiço de entre-dois, um mundo anfibológico, fractal, um mundo onde o mesmo e a diferença são permanentemente canibalizados e reestruturados.

1 Mas o campo também: um exemplo é a penetração crescente dos estilos musicais do tipo beat, rap ou zook, juntamente com a Coca-Cola. É hoje frequente vermos crianças sub-nutridas bebendo Coca-Cola.
2 Por isso é falsa a visão tradicional campo/cidade. Mesmo os quintais das casas de alvenaria e os descampados das cidades são aproveitados para a produção de milho e de mandioca, sendo lavrados pelas mulheres com a pequena enxada curta campesina.
3 Os grupos de "crianças da rua" (expressão corrente nas cidades), rapazes e raparigas, que pululam um bocado por todo o lado, erigem como seus heróis e seus locais de habitação nomes como Rambo, Charles Taylor e Tchetchenia, por exemplo.

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