04 março 2008

Rainha Laurinha e seu povo


Esse é um quadro apresentado no semanário "Domingo" da semana passada (02/03/08, p. 7). Uma situação realmente difícil, chocante. Mas, também, um confronto entre a visão de desenvolvimento do Estado e do jornalista (com a qual estou inteiramente de acordo) e a visão de desenvolvimento da rainha e do seu povo. Teria sido interessante saber, por exemplo, o que ela e o seu povo entendem por desenvolvimento. E por que razão (trabalho que levaria dias se fôssemos capazes de nos despir do nosso estatuto de intrusos modernos) não desejam seguir os conselhos sensatos do Estado. Isto, para além de a rainha Larinha estar online com os espíritos, como diz o trabalho do "Domingo".
Nota: clique duas vezes sobre a imagem com o lado esquerdo do rato para a ampliar.

16 comentários:

(Paulo Granjo) disse...

Apontamento etno-linguístico: na maioria das línguas bantu, não existe tradução para a palavra "desenvolvimento"; quando existe, é normalmente a mesma palavra que traduz "caos".

Apontamento etno-político: independentemente de eventuais episódios autoritários, um régulo ou rainha dessa zona não impõe decisões a subdítos obedientes; faz suas as conclusões do conselho ou assembleia, onde (para evitar que a sua opinião seja contradita)muito raramente fala sem ser para anunciar essa decisão, tendo pessoas que se ocupam de argumentar as suas opiniões, durante a discussão.

apontamento etno-jornalístico: uma pessoa que não foi apresentada, exige tradução e tira fotos numa situação como a descrita é quase inevitavelmente interpretada como uma autoridade policial que prepara repressão em caso de desobediência.

Carlos Serra disse...

Muito obrigado pelo excelente enquadramento, Paulo!

umBhalane disse...

Relato apaixonante.

Bela peça de jornalismo, para quem “curte” antropologia.

No meio de um drama, que normalmente aconselharia a fuga, ainda há quem defenda outros valores – os seus.

Paulo Granjo deu uma excelente ajuda para uma melhor percepção das questões em apreço.

Governar é difícil.

Então num país vitral como Moçambique, é preciso muito tacto, muita sabedoria, de “Velho(a)”.

Anónimo disse...

Em xangana, desenvolvimento traduz-se por Nhlovuku. Em todas as quatro linguas mocambicanas que conheco existe uma traducao para a palavra desenvolvimento. Numa palavra original e nao num neologismo. A proposito, quais sao as linguas africanas que o sr. Paulo Granjo fala? Em caso de nao saber nenhuma, onde apanhou essa de que nas linguas bantu nao ha traducao para desenvolvimento? Pode indicar referencias?

(Paulo Granjo) disse...

Caro anónimo:

A primeira das muitas referências a esse dado com que me cruzei (há uns 16 anos atrás, ainda finalista de licenciatura) foi "Des racines pour vivre. Sud-nord: identites culturelles et developpement", de Thierry Verhelst.
Na rápida pesquisa internética que acabei de fazer (lembrava-me da primeira parte do título, mas não do autor), fiquei a saber que já esgotou, mas foi recentemente reeditado. Por isso, se lhe interessa, não terá dificuldade em encontrar-lhe o rasto.

Quanto à palavra que refere, não falo changana mas lembrava-me de a ter ouvido recentemente.
Consultado o meu caderninho de terreno, ouvi-a há cerca de mês e meio numa conversa com 3 vaNyanga. Lembrava-me dela porque foi uma carga de trabalhos delimitar-lhe o sentido.
Desistimos os 4 de lhe encontrar uma tradução para português, pois refere-se (segundo os outros 3) a uma condição ontológica (e não social) ligada a uma melhoria recorrente de situação, apoiada pelos antepassados mas sem intervenção deles, ou de qualquer feitiço propiciatório.
Só cheguei a esta apresentação descritiva do conceito que está por detrás da palavra devido à impossibilidade de a traduzir pelas palavras que ia sugerindo. Isto porque os meus interlocutores foram bem claros que nhlovuku não era "enriquecimento", "avanço", "progresso", "desenvolvimento" ou "sorte", nem sequer a capacidade para essas coisas.

Conforme saberá, os vaNyanga são bastante "picuinhas" com as palavras, sobretudo quando elas designam conceitos que são relevantes para eles.
Mas pode bem ser que, entre elites letradas urbanas, essa palavra antiga tenha sido reutilizada, metaforicamente, para designar com valoração positiva um conceito que, aliás, é uma "falsa ideia clara", com muitos sentidos possíveis.

Sem qualquer ironia, interessa-me muito saber se de facto nhlovuku tem essa utilização corrente em contexto urbano-modernista, ou se você só escreveu isso para me chatear.
Porque, tratando-se do primeiro caso, esse dado é muito interessante para as pesquisas que actualmente desenvolvo.

Anónimo disse...

Caro Paulo Granjo, o xangana ee a minha lingua materna. Aprendi a ler e e escrever nesta lingua. Lendo os hinarios e os livros da escola dominical que estavam escritos nesta lingua. Quando fui aa escola ja lia perfeitamente. Mantive a minha ligacao com a lingua, apesar de me ter urbanizado, apesar de ter ido aa universidade e tudo isso.

Nhlovuku quer sim dizer desenvolvimento. A explicacao confusa que deu, que mete nyangas e tudo, revela apenas que nao conhece a lingua. A biblia, um livro complexo e que retrata realidades diferentes das nossas, foi traduzida com sucesso para p xangana e para outras linguas africanas. Quem lee esse livro nas nossas linguas nao constataraa nenhum defice vocabular laa.

Pode ser que o xangana seja pobre para se referir a alguns termos das ciencias naturais. E tenha, por isso, que se socorrer de outras linguas. Nao seria, no entanto, caso unico. idiomas como o portugues ou o alemao, se socorrem tambem do latim e do grego no estudo das ciencias.

O xangana descreve com competencia quase todos os fenomenos sociais e economicos. E, para desenvolvimento, tem a palavra nhlovuku. Posso lhe garantir que nao ee uma traducao forcada. Se quiser confirmar fale com outros eximios falantes da lingua. Muitos dos quais nem sao elite urbana. Refiro-me aos pastores das igrejas evangelicas. Isto para nao falar dos jornalistas da radio Mocambique.

Em resumo, o seu nyanga lhe intrujou. Nao quis cooperar no seu estudo. Nhlovuku ee sinonimo de desenvolvimento. Pergunte a quem quiser

umBhalane disse...

Caro Sr. Anónimo

Deixe-me ser Português.

Que raio de maneira de tratar (me dirigir) a uma pessoa!

Deixe-me ser Moçambicano.

Não tem maneira. Fazer o quê?

Foi apenas para descongestionar.

Muito obrigado pela sua excelente contribuição, para o esclarecimento e AJUDA.
Obrigado, mesmo.

(Não, não sou antropólogo - gosto, sobretudo do que é bem feito).

Já há muito tempo que não via (lia) um final tão construtivo e airoso, num blogue.

PARABÉNS.

(Paulo Granjo) disse...

Caro anónimo:

O assunto interessou-me tanto que não consegui esperar pela sua resposta, antes falar com outras pessoas acerca do assunto.
Por isso, já sei que é verdade que "nhlovuku" é utilizado como sinónimo de "desenvolvimento", pelo menos em contexto urbano.
Vou agora ser obrigado a saber como é em zonas rurais e, nestas, ver se há diferenças entre os sítios mais e menos permeáveis ao discurso político e a acções de desenvolvimento.

Isto porque os "meus" vaNyanga não me aldrabaram. Não estávamos a falar de "desenvolvimento", mas das razões para a vida correr "bem" ou "mal" e sobre o que é correr "bem" ou "mal".
Por outro lado, a pessoa mais velha com quem falei hoje tem ideia que só ouviu a palavra com esse sentido depois da independência, enquanto outras notaram, com a conversa, que há várias palavras que foram (re)aparecendo e desaparecendo em changana, à medida que mudavam as "modas" linguísticas do discurso político.
Acho fascinante este uso de um conceito ontológico (ou filosófico, se quiser), aliás bastante adequado em termos metafóricos, para designar essa nova ideia politico-económica. Por isso, vou estudar muito seriamente o assunto.

Porque é, de facto, de uma nova ideia que se trata. Mesmo na Europa, a palavra "desenvolvimento" só foi inventada no século XX (antes falava-se de "progresso", o que é uma coisa diferente) e pode ter vários sentidos, desde "crescimento económico" a "bem-estar social generalizado", consoante o paradigma económico de quem a usa.
(Como se interessa por referências e fontes, pode ver, acerca disso, os livros de Mário Murteira, ou mesmo o artigo que publiquei no nº24 da Seara Nova, em 1989, se me reconhece algum crédito.)

Deixe-me, entretanto, notar que é bom que o legítimo orgulho na nossa língua e na nossa religião não obscureça o nosso sentido crítico.
Por um lado, as línguas só têm palavras para o que é pertinente - e, se uma nova coisa tem que ser nomeada, os falantes "desenrascan-se", importando, inventando novas palavras ou dando novos sentidos às existentes. Acontece com todas e não é um sinal de que uma língua seja "pobre".
Por outro lado, não havia nas cosmologias da África austral (tal como, aliás, nas da Europa) uma figura como o diabo; é uma invenção do médio-oriente. Tão pouco havia a ideia de "alma", no sentido judaico-cristão-muçulmano, pois tanto a parte espiritual dos antepassados como os espíritos são conceitos diferentes desse e as ontlogias locais eram mais complexas que a ideia de "alma" - um bocado simplista, em comparação com elas.
Por isso, a Bíblia não pôde ser traduzida por haver palavras changana para tudo; manipulou os conceitos e palavras existentes para "encaixarem" na mensagem judaico-cristã - e, ao fazê-lo, adulterou-os.
A tradução da Bíblia não me parece um bom motivo de orgulho linguístico e nacional. Foi, afinal, um acto de imperialismo linguístico e cosmológico.

Deixe-me, por fim, voltar a agradecer o seu comentário - que, como vê, foi muito útil para mim e para o meu trabalho.

Anónimo disse...

Grande lição, professor Granjo.

Fico com saudade do tempo que fui seu aluno.

Sucessos no trabalho.

Anónimo disse...

Isto é demais meu povo, como se já não bastasse o africano ser visto como um coitado, já se aranjou uma justificação para a sua miséria. Nas linguas bantu não existe tradução para a palavra desenvolvimento. Que sujeira.
Tal e qual o primeiro anónimo nasci e cresci numa zona onde minhã mãe e outros adultos usavam e usam a palavra nhluvuko como significativo de desenvolvimento, progresso, bem estar etc. Essa palavra não tem outro significado que não estes seja onde for que ela seja empregue.
Se o senhor Paulo Granja publicar um estudo baseado nos relatos dos Tinyangas com as conclusões que apresenta acima será desafiado por economistas, linguistas e outros estudiosos do social para além de nós simples falantes originários da lingua.
Cossa

Matsinhe disse...

O Sr. Paulo Granjo é demais. Imagine então o Sr. Paulo Granjo que eu chegue a um país árabe, e informo os habitantes desse país que na sua língua não existe a palavra ESPÍRITO (é só um exemplo claro).Entretanto não falo NICLE de árabe. O que pensaria do estado da minha cabeça aquele nobre povo?

(Paulo Granjo) disse...

Cossa e Matsinhe (com nomes é melhor para conversar, não é?):

Não se façam de coitadinhos, nem me acusem das velhas teses de um filósofo alemão fascistóide.

Lá por o francês e o inglês não terem diferença entre "ser" e "estar", que parece ontologicamente tão essencial a quem fala português, isso não impediu que existam muitíssimo mais filósofos de nomeda, tratando questões ontológicas, nessas línguas do que em português.

Lá por o conceito de desenvolvimento (e, consequentemente, uma palavra para ele) não existir EM LADO NENHUM DO MUNDO no início do séc. XX, não deixaram de existir há muito, na realidade social, fenómenos a que pudemos chamar "desenvolvimento", depois de inventar a palavra. Na Europa/América gente com diploma inventou uma palavra a partir de um verbo pré-existente; no sul de Moçambique, segundo parece, usou-se uma palavra que correspondia a um conceito ontológico-filosófico complexo, concebido por gente sem diploma. Parece-me socialmente mais digno e inteligente, não? Ou o problema é o diploma?

Disse "segundo parece", porque os dados expostos pelos vários participantes nesta conversa (e nas outras que a propósito dela tive) assim o indicam, mas É PRECISO INVESTIGAR.
Investigar não com base nas opiniões e preconceitos de cada um de nós mas, extensivamente, com base no conhecimento e memória de diferentes falantes da língua, envolvendo também linguístas e outros especialistas QUE PERCEBAM ALGUMA COISA DO ASSUNTO (porque eu, por exemplo, posso ser uma autoridade em antropologia, mas tudo o que disser sobre métodos artesanais de pesca será provavelmente asneira, pois não percebo nada acerca disso).
Em alternativa, alguém se pode achar no direito de decidir que pesquisar coisas dessas é inconveniente e esquece-se o assunto. Já aconteceu em vários países, em várias épocas, mas creio que os resultados não foram grande coisa.

Entretanto, suspeito que não existe palavra para "espírito", no sentido que aqui tem, em árabe. Porque o conceito lá não existe, embora existam muitos outros conceitos acerca de entidades espirituais. Você pode dizer isso aos árabes, sem falar árabe, a partir do momento que eles digam que esse tipo de entidade espiritual não existe e que as palavras que existem designam entidades diferentes dessa. A solução, aí, é descrever o que é um "espírito" e adoptar uma palavra adequada, com esse esclarecimento.

Aliás, também em português não há palavra para "espírito", no sentido moçambicano. Você e eu sabemos do que é que estamos a falar quando usamos a palavra neste contexto, mas alguém que nos esteja a ler em Portugal ou no Brasil não sabe, porque a palavra lá designa outros conceitos espirituais. Ou seja, usou-se uma palavra que já existia em português
para designar um novo conceito, mas ela só faz sentido no seu contexto (ou explicando-se o que ela quer dizer), porque já tinha outros sentidos.

Isto faz do português uma língua pobre, que limita a espiritualidade, e subalterna do changana?

chapa100 disse...

adorei aqui os comentarios, fica aqui o desafio de que temos que investigar. pena que entre aqui alguns preconceitos que nao ajudam a ninguem. o paulo granjo com base em notas de investigacao tentou "explicar" o caso da rainha. ainda bem que pessoas que tem um quadro cientifico q ajuda-nos a perceber algum fenomenos sociais na nossa sociedade, e isso nao atenta em nada a nossa cultura, mas sim ajuda-nos a perceber algumas coisas "uteis".

os mocambicanos tem que ter cuidado em nao perder o comboio da ciencia, em nome de preconceitos e identidades ameacadas.

chapa100 disse...

correcao: adorei os comentarios, fica aqui o desafio, temos que investigar. pena que entre nos existem alguns preconceitos que nao ajudam a ninguem. o paulo granjo com em suas notas de investigacao tentou explicar o caso da rainha. ainda bem que existem pessoas que buscam no quadro cientifico explicacoes sobre alguns fenomenos sociais na nossa sociedade, isso nao atenta em nada a nossa cultura, mas sim ajuda-nos a perceber algumas coisas "uteis". parece-me que quer o paulo e outros apoiam-se em conhecimentos que sao validos, apesar de parecerem opostos, existe muita complementaridade em termos de objecto de estudo.

os mocambicanos tem que ter cuidado, em nome de preconceitos e identidades ameacadas, corremos o risco de perder o comboio da ciencia.

por fazer comentarios atraves do meu celular, vou comendo palavras.

Anónimo disse...

Que tal se Paulo Granjo e os seus informadores nos indicarem aqui o significado de Nhlovuku, que não seja desenvolvimento, progresso, melhoria do bem-estar? Para muitos de nós, falantes de changana, sempre que esta palavra aparece é com esses significados. E isso não aconteceu da independência para cá! E essa palavra não é um neologismo. É uma palavra antiga do Changana, e creio que do ronga e do chitswa também. Se não significa desenvolvimento, progresso, melhoria do bem-estar... Então, qual é o seu significado.

O que estou a sugerir é que Paulo Granjo deve ter mais prudência na sua conclusão de que es linguas bantu não têm nenhuma palavra para desenvolvimento. Como o próprio reconhece, deve articular mais com linguistas, este país formou uns tantos exactamente especializados em linguas bantu.

Uma última sugestão. Paulo Granjo pode comprar, na África do Sul, um dicionário de Changana para Português. Vá para a palavra Nhlovuku e veja o que ela significa. O facto de, naquele país, o changana ser lingua de ensino já há bastante tempo, fez com que eles tivessem muitos materiais nessa lingua, incluindo dicionários.

(Paulo Granjo) disse...

Caro anónimo:

Veja a resposta na outra caixa de comentários em que escreveu isto.

Já agora, acrescento ao que lá deixei escrito dois pontos relativamente secundários:

1. Não sou eu que conclui que a grande maioria (e não todas) das línguas bantu não têm ou tinham palavra para desenvolvimento. São os estudos de linguístas na década de 1980, citados no livro que mais acima indiquei. Isso não tem nada de extraordinário, pois as línguas europeias também não tinham, algumas décadas antes. O que é relevante é que, na maioria dos casos, as palavras adoptadas são também sinónimo d "caos" ou "desequilíbrio social". Por que razão isso acontece, tentei explicar à Marta nessa outra caixa de comentários. Não é, entretanto, esse o caso de "nhlovuku" (com carga neutra original) nem de "tchindja makaliro", que parece ter uma carga positiva.

2. Os dicionários procuram fornecer palavras com significados afins, ou iguais caso existam. Não garantem que uma palavra tenha o mesmo significado e são até muitas vezes fontes de mal-entendidos, ou de risotas acerca de quem escreve noutra língua com base neles. Entretanto, não é preciso ir à África do Sul para comprar um dicionário português/changana. Está à venda em Maputo, tal como os de algumas outras línguas moçambicanas e as respectivas gramáticas. Ou você acha que os linguístas do seu país andam a dormir?