06 maio 2006

Teatralidade política

Uma parte significativa da relação política dominantes/dominados passa, quase diariamente, pela produção de grandes e plurais conjuntos de efeitos e por um produto a que Jacques Lagroye chamou Estado-Espectáculo[1].
Permitam-me que vos dê dois exemplos, um do quotidiano político moçambicano e outro do extra-quotidiano, o das eleições.
Conhecem a veneração e o respeito «instintivo»[2] que muitos de nós sentem quando aparece ou passa uma «estrutura», este extraordinário termo-mana que designa funcionários políticos e governamentais. [3] Se a «estrutura» pára ou se nos dirige, por exemplo, surge em muitos de nós toda uma motricidade veneral, todo um conjunto diversificado de actos tendentes a demonstrar respeito ao Chefe, docilidade, etc. Quando a «estrutura» nos dirige solenemente a palavra (os olhos mostrando que o faz como concessão e ciente da força de que dispõe), convencemo-nos, muitos de nós, de que o destino quis que fôssemos escolhidos pela providência para merecermos a graça da «estrutura».
Mas isso não é apenas produto digamos que do fundo de respeito que é o nosso capital socializado. Quero dizer que a nossa atitude sacral é especialmente percutida pela teatralidade posta em acção pelas «estruturas».
Na verdade, da parte delas é desencadeado toda uma simbólica, todo um conjunto ritualizado e liturgizado de actos solenes, verbais, gestuais e posturais, nos quais muitas vezes o discretismo presencial, o segredo, a prudência na fala e a distância propositada[4] marcam a implacável cadência da assimetria, erigindo esta em código rigoroso e «natural». Mas, ainda mais fundamentalmente, a fecundidade representacional, «magnética», das «estruturas», advém da combinação entre a visibilidade ostentatória que exibem e o escamoteio prepositado de uma força porém sempre sentida por nós como disponível. É nas «superestruturas» que essa imbricação é, naturalmente, mais possante e mais irradiadora: o aparato dos carros a grande velocidade, as sirenes, as motos, a segurança, a guarda de honra, os palácios em zonas estratégicas (simultaneamente visíveis e resguardados)[5], etc. É a partir dessa liga misteriosa e polissémica que tudo na «estrutura» é por nós sentido pertencer imanentemente à imponência extra-comum, ao extraordinário, ao não-habitual, enfim ao sagrado[6].
Mas temos, mais emblemático ainda, todo um território temático por explorar, o das eleições.
Com efeito, a plural engenharia política posta em campo por vários candidatos políticos no sentido de explorar a figura do redentor absoluto não foi ainda analisada, salvo um pouco por mim.
O avião, o helicóptero, as camisetes, as capulanas, os lenços de cabeça, as caixas de fósforos e as pastas dentífricas com a efígie do grande líder, as distribuições generosas de dinheiro, as bandeiras partidárias, as bandas de música, os jogos comiciais de sombra/luz (uma especialidade de Máximo Dias em 1994), os recursos vestimentários dos líderes[7], etc., enfim todo um conjunto de meios e de técnicas repentinamente «fantásticas», juntam-se à festa e ao ritual dos comícios, aos palavrares inflamados ou solenes nos meios de comunicação de massa (especialmente na televisão), às particularidades linguísticas (Wehia Ripua é, neste campo, absolutamente inovador[8]), às reconstruções históricas[9], às subtilezas pedagógicas[10] e a vários outros eixos do pouvoir sur scènes, como diria Georges Balandier.
Não é possível marginalizar os efeitos mobilizadores, sedutores e «terapêuticos» de tudo isso em milhões de pessoas herdeiras da memória de uma guerra, empobrecidas, entrópicas, ávidas de paz e de festa.
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[1]Lagroye, Jacques, La légitimation, in Grawitz, Madeleine et Leca, Jean, Traité de Science Politique. Paris: Presses Universitaires de France, 1985, 1er vol., p.462.
[2]Evidentemente, esse respeito pode ser representado, encenado.
[3]É para mim extremamente interessante avaliar, diariamente, a carga de irremediabilidade naturalizada, sacralizada e desindividualizada que é projectada por muitos actores sobre quem representa o «poder». Na verdade, o fundamental no imaginário social é não tanto quem é temporariamente o suporte do «poder» (esta ou aquela pessoa), mas este «poder» (ou, como se diz popularmente, o «governo»).
[4]Veja, a propósito, dois excelentes trabalhos introdutórios e de uma grande riqueza teórica: Simmel, Georg, Société et sociétés secrètes. Paris: Circé, 1991; Jamin, Jean, Les lois du silence, Essai sur la fonction sociale du secret. Paris: François Maspero, 1977.
[5]Sabemos todos um pouco quanto as periferias do «poder» procuram imitar os centros maputenses. Assim, também nas províncias há comitivas, sirenes, segurança, «palácios», etc. Por toda a parte o «poder» exibe-se, representa-se.
[6]Mas em todo o mundo encontramos esta componente cénica do poder.
[7]Recordai-vos, certamente e por exemplo, do boné «à jovem» de Chissano, da picareta e do chapéu protector «à mineiro» de Miguel Mabote, dos majestosos turbantes de Jacob Salomão Sibinde (aliás, Yá-Qub Sibindy), da cana de pesca de Wehia Ripua na TVM.
[8]Tenho ouvido e lido com frequência que Ripua «fala mal» ou que «escreve mal». Ora, quero postular que Ripua não fala nem escreve mal: é, apenas, um político hábil, muito hábil e visceralmente maquiaveliano, muito mais atento ao que diz e escreve do que muitos de nós pensamos.
[9]Este é um campo particularmente fértil. Talvez um dia os investigadores se decidam a estudar os discursos dos candidatos e a medir a distância que há entre a fé rankiana («a história tal e qual como foi») e a realidade, em especial a realidade dos candidatos ao «poder».
[10]Por exemplo, em 1994, Máximo Dias apresentando-se como «candidato didacta» e Mário Machel como enviado de Deus.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei, professor.
Jonas