08 maio 2006

Abdicai dos manuais e das ortodoxias

Qualquer bom manual de investigação nos propõe etapas de investigação, nos propõe qualquer coisa que parece, muitas vezes, ter a precisão de um relógio, de um produto acabado. O princípio implícito é um conjunto de pressupostos e de normas universalmente aceites. Esses pressupostos e essas normas resultam de acordos, nem sempre fáceis, entre os estudiosos do social.
E consoante as áreas e as escolas, dar-se-á ênfase a este ou àquele método, a esta ou àquela técnica, a esta ou àquela posição.
Os historiadores, por exemplo, farão das fontes escritas (arquivos) e das fontes orais (entrevistas) os seus pilares, dir-nos-ão, por exemplo, que as fontes escritas precisam de ser depuradas, comparadas, etc. E entre eles, haverá os que privilegiarão mais certos tipos de fontes. Os africanos e africanistas, por exemplo, defenderão a pureza das fontes orais, sob pretexto de que as coloniais estão contaminadas pelo vírus da ideologia, como se as fontes orais fossem algo estrangeiro a todo o trabalho de construção e de reconstrução ideológica operado pelos “velhos” e pelas elites.
Os antropólogos, por sua vez, dir-nos-ão que a observação de terreno é para eles fundamental e que a tomada de notas constitui uma linha mestra do seu trabalho, numa permanente interface com os actores observados. Por vezes esquecem-se de que os observados são apenas o produto teórico do observador.
Os sociólogos, dependendo se são adeptos dos métodos “qualitativos” ou “quantitativos”, optarão os primeiros pela observação também, como os antropólogos, ou, no caso dos segundos, pelo questionário, pela estatística. “Objectividades” e “subjectividades” de capelas sectárias chocarão, quantas vezes, numa guerra cognitiva interminável, apaixonada e estéril. Os “objectivos” do questionário esquecerão muitas vezes que os quesitos escolhidos farão os inquiridos dizer o que os proponentes queriam que eles dissessem e os “subjectivos” transformarão duas entrevistas, por exemplo, numa verdade universal.
Existem, em nosso entender, dois tipos fundamentais de problemas em qualquer tipo de investigação:
(a) O privilegiamento de um certo tipo de método e de certo ângulo de visão consoante as regras e os rituais em vigor nesta ou naquela confraria ou nesta ou naquela escola. Isto coloca o problema da feudalização metodológica.
(b) A convicção de que o método ou de que o instrumento de trabalho criado é imune às concepções pessoais do investigador e aos seus juízos de valor. Isto coloca o problema da neutralidade do investigador, mas, também, o da sua arrogância.
Quanto a nós, não há métodos mais adequados do que outros apenas porque as regras de uma ciência os estabeleceram ou porque elites ou escolas de cientistas deles fizeram o seu emblema. Assim como não há métodos e corpos conceituais africanos, europeus” ou asiáticos.
Os métodos não têm raça nem pátria nem capelas. Nem são, regra geral, em meu entender, produto da razão, mas da intuição, da vertigem. E também não são adequados em si, como coisa tecnica e tecnicamente formulável, mas em função (1) dos temas que escolhemos, (2) da nossa personalidade de investigadores (3) e da nossa condição social. A esse propósito, o recentemente cientista político francês Jean-François Médard afirmou num seminário que orientei em Março de 2004, falando da sua carreira de investigador:

“Eu não posso partir de metodologia a priori, apenas posso falar da metodologia que utilizei – é produto e diagonal de um temperamento pessoal (....) Não é possível falar de metodologia que não sintamos pessoalmente. Se vocês quiserem, eu ao fim e ao cabo segui o princípio do prazer (...)".

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