18 abril 2006

Para a história da sociologia

(Extracto do meu livro com o título Ciências, cientistas e investigação (Manifesto do reencantamento social). Maputo: Imprensa Universitária, 2005. A seriação das notas de rodapé é a do livro)


O “Curso de filosofia positiva” de Auguste Comte é muito mais do que o primórdio da sociologia. As suas clássicas lições 47 a 51 são muito mais do que a constituição das bases de uma ciência controversa hoje ainda. Elas são muito mais do que um ataque à metafísica e à filosofia e do que a antecâmara do positivismo.
Na verdade, as lições são especialmente a tradução fiel de um homem profundamente conservador, marcado e perturbado com a agitação social decorrente da formação do proletariado europeu em geral e do francês em particular, desse proletariado magistralmente descrito em romance por Émile Zola.
A pletora de termos e expressões comteanas para estudar os problemas sociais é bem eloquente: organismo social, doença e análise patológica são três deles32.
Em toda a sua vida, Comte viveu atormentado pelas revoluções, tal como, aliás, o seu sucessor Émile Durkheim, e por isso as suas lições pagam uma importante factura à sua preocupação em criar uma “física social” capaz de, em sua “análise patológica”, debelar as “doenças” do “organismo social” perturbado pela agitação social. Defensor da desigualdade social, recusando às mulheres o estatuto de seres pensantes e responsáveis, Comte tentou fazer da sua “física social” uma reflexão sobre como controlar o que ele chamou “desorganização social”33.
Por outro lado, a sua atracção pela ciência naturais era tão profunda, que toda a sua vida entendeu que escrever bem não era próprio de um cientista, que o que importava era a clareza das ideias, não a beleza do estilo. O modelo de escrita devia ser o dos naturalistas: Bertholet, Bichat e Cuvier. Chegou mesmo a escrever uma espécie de guia de escrita, muito rigoroso e árido, propondo, por exemplo, duas linhas por frase, sete frases por parágrafo, etc.34.
O edifício erguido por Comte tem a abóbada fechada por outro conservador, outro fervoroso admirador e praticante das regras das ciências naturais e outro atormentado pela desordem social, Émile Durkheim35.
Por outro lado, a preocupação pela desordem social está bem patente numa das origens que a sociologia social teve: a do reformador social, ansioso por minorar a situação dos pobres, preocupado também com a reforma das prisões. Em Inglaterra e França e mais tarde nos Estados Unidos, os reformadores sociais foram ou “sociólogos de terreno” ou seus auxiliares36.
Finalmente, falta referir, em relação ao percurso da sociologia, um dos seus momentos capitais: a estatística.
Como nasce a estatística, em que contexto social? Ela nasce, exactamente, com as cidades europeias cheias de operários reivindicando melhores condições de vida.
Também aqui o objectivo último é o de domesticar a ordem social nascente, de controlar a mudança social, de vigiar os operários, de domar as “classes perigosas”, expressão cunhada entre os séculos XVIII e XIX. Casando-se intimamente com a sociologia e com as preocupações das burguesias nacionais europeias, a estatística cumpre o seu papel de parteira científica da ordem pública.
Com efeito, especialmente no século XIX, os inquéritos aos “pobres” multiplicam-se. Tudo se pretende saber deles: o que comem, o que bebem (especialmente o que e quanto bebem), o que fazem, como se divertem, quais os seus hábitos sexuais, etc.37 E o momento nuclear aqui é a estatística criminal.38
Mais tarde, em 1925, nos Estados Unidos, lá onde a estatística se tornou quase, em certas correntes sociológicas, a sociologia por excelência, Park e Burges, na sua introdução à ciência da sociologia, escreveram: “Todos os problemas sociais são problemas de controlo social”39.
Também não é por acaso que, nos caminhos destinados ao controlo social, surja, já no século XVIII, o tema do “desvio social, enquanto Lombroso funda no século XIX a criminologia e define o criminoso como um indivíduo que “reproduz os instintos ferozes da humanidade primitiva e dos animais inferiores”.40
A coroar todo um edifício no qual as classes dominantes europeias tentam assegurar a todo o custo a ordem social e reduzir o impacto das greves e dos protestos sociais, surge a obra de Darwin.
As teses de Darwin foram muito para além das suas origens biológicas e o conceito de evolução passou a ficar marcado pela ênfase no conceito de sobrevivência do mais apto41. Este é um conceito que se encaixava bem na hegemonia burguesa e nas representações sociais que promoveu seja na Europa com a ajuda da sociologia, seja nos países colonizados com a antropologia, auxiliada também pelas teses de Hegel e dos racialistas, como mais à frente veremos.
Mas para o Estado a questão foi para além de estudar ou fazer estudar as “classes perigosas”. Com efeito, as lutas sociais dos trabalhadores obrigaram-no a fazer algumas concessões, designadamente algum poder político (e, aqui, é importante referir o sufrágio universal) e alguma participação na mais-valia dos benefícios, criando, a pouco e pouco, a estrutura do Estado-Providência42.
Mas voltemos à sociologia, cujo território é bem mais complexo do que parece.
Na verdade, ele foi marcado e continua a sê-lo pela divisão em duas grandes correntes: a corrente causal e a corrente compreensiva.
A corrente causal sustenta que à retaguarda de um determinado fenómeno existe outro ou existem outros que o provocaram, que lhe são exteriores, antecedentes. Aqui o expoente é Durkheim43. Esta corrente é claramente nomotética e aquela que mais namorou e namora o núcleo duro das ciências, as da natureza.
Por seu turno, a corrente compreensiva defende que o fundamental é procurar o sentido que os indivíduos dão aos seus actos. Aqui há um trajecto que vai de Dilthey44 e Simmel45 a Max Weber, na sociologia alemã. Este é o núcleo ideográfico, mole, claramente rebelde ao caixilho das leis.
32 Comte, Auguste, Leçons de sociologie. Paris: GF – Flammarion, 1995, p. 166.
33 Ibid., p. 249.
34 Lepenies, Wolf, Les trois cultures, Entre science et littérature l´avénement de la sociologie. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l´homme, 1990, pp. 17-18.
35 Veja-se, por exemplo, Durkheim, Émile, La science sociale et l´action. Paris: Presses Universitaires de France, 1970, passim.
36 Leclerc, Gérard, L´observation de l´homme, Une histoire des enquêtes sociales. Paris. Éditions du Seuil, 1979, pp.60-71, 221-223.
37 Leclerc, Gérard, L´observation de l´homme…, op.cit., pp.60-80.
38 Ibid., pp. 212-228.
39 Ibid., p. 69.
40 Citado em Dias, Jorge de Figueiredo e Andrade, Manuel da Costa, Criminologia, O homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 171-172.
41 Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das Ciências Sociais, Para abrir..., op.cit., p.48.
42 Wallerstein, Immanuel, L´Après libéralisme, Essai sur un système-monde à réiventer. Paris: Éditions de l´Aube, 1999, pp. 52, 73.
43 Veja-se, por exemplo, Durkheim, Émile, O suicídio, Estudo sociológico. Lisboa: Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 1973.
44 Dilthey, Wilhelm, L´édification du monde historique dans les sciences de l´esprit. Paris: Les Éditions du Cerf, 1988.
45 Simmel, Georg, Sociologie et épistemologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1991 (2ème éd).

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