01 maio 2008

Espíritos, curandeiros e mercado (6) (fim)

Hoje termino a série.
As leis do mercado vão estimular o florescimento de toda uma vasta gama de doutores cura-tudo, que oferecem às pessoas curas e remédios para tudo, literalmente para tudo. O cura-tudismo pertence, agora, ao reino das mercadorias, à competição, à inovação das receitas e dos campos de aplicação.
Tenho por hipótese que os verdadeiros médicos sociais, os herbanários (por mim referidos num dos números desta série), perderam terreno em favor dos adivinhos de todos os azimutes e crescentemente chegados de países estrangeiros, habitando em particular o mundo urbano e péri-urbano.
E creio que, ontem como hoje, vale a pena reflectir no que um dia Marx escreveu: “A angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia (…). Exigir que [o povo] renuncie às ilusões é exigir que ele renuncie a uma situação que precisa de ilusões."
Com tanta pobreza multilateral, lá onde a insegurança é permanente, onde cada amanhã é uma incerteza, não surpreende que as pessoas tenham tanta fé em forças que as transcendem. Os cura-tudo, mas também os pastores das inúmeras igrejas evangélico-salvacionistas que inundam o mercado da crença, tornaram-se os seus intelectuais orgânicos, aqueles que contribuem para a hegemonia do grupo social dominante através de um consenso plural (calibrado pelo medo, pelo amortecimento que a contra-sociedade representa e pela promessa de um além diferente), que pedem a quem deles carece diariamente que se conformem com as relações sociais existentes para que, um dia, espíritos e Deus os recebam e os redignifiquem.
Pretender que não tenham ilusões é exigir que renunciem a uma situação que delas carece.
A condição social daqueles para quem cada dia é um ponto de interrogação torna-os prisioneiros irremediáveis de um duplo constrangimento: por um lado, a vulnerabilidade perante os fenómenos da natureza e a insegurança do seu modo de vida catapulta-os para a interpretação emocional e antropomórfica da vida; por outro, esta visão reforça a vulnerabilidade e a insegurança.
Os milhares de pessoas, regra geral de origem humilde, que consultam adivinhos cura-tudo e/ou que acorrem aos cultos milagreiros esperando que espíritos e Deus os ajudem a libertarem-se dos flagelos que as perturbam, criam novos espaços identitários, encontram aí um sentido para a vida, neles recebem solidariedade, aí é-lhes assegurada uma recompensa extra-humana para os males terrenos caso creiam sem reservas na tutela espírita ou na justiça divina.
Mas no preciso momento em que isso acontece, ocorre a evicção completa do projecto de modificação real das condições de vida.
Com efeito, ao aceitarem que todos os males são obra dos "maus espíritos" (Igrejas Zione, adivinhos cura-tudo) ou do "diabo" (Igreja Universal do Reino de Deus), as pessoas acabam por ver transferida (com a sua adesão, afinal) para entidades sobre-humanas a responsabilidade social na génese da miséria e da violência. Perdido o sentido crítico, trocado que é pelo sentido das crenças, eles parecem evacuar o desafio humano de uma transformação social genuína.
Aqui temos, afinal, um exercício de despersonalização trágica.
Nota: claro que mesmo as classes médias não desdenham usar os serviços referidos. Mas isso será motivo de um futuro trabalho.

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