27 março 2007

A síndrome do Barão de Münchhausen em Moçambique (5)


"O grande problema das periodizações não está na ordem a pôr no passado, mas na ordem a impôr ao futuro" (aforismo pessoal evidentemente sem sentido)

O chissanismo (1986/2004, balizas imprecisas) é uma era que precisa de ser profundamente investigada. Como, afinal, a era anterior, a do samorismo. Como aliás, tudo o que, suspeitosamente, termina em ismo.
Eu não fiz a investigação e por isso, aqui, o meu propósito consiste apenas em sugerir algumas pistas, algumas hipóteses, tudo muito toscamente.
Há quatro fenómenos no chissanismo que são, para mim, marcantes:
1. A imensa avenida de possibilidades de paz formal e de aceitação do pensar diferente aberta no país com o fim da guerra civil em 1992.
2. A formação e a consolidação rápidas da burguesia nacional e o desenvolvimento sem limites do capitalismo de Estado.
3. O útil e remunerador laxismo de Jano das instituições estatais.
4. A unanimidade pública sobrevinda no seio do partido no poder quando confrontado com os partidos rivais.
Com o fim da guerra civil, torna-se possível reconstruir seja o que foi destruído nas infra-estruturas, seja a mentalidade dos Moçambicanos. O programa governamental de reconstrução não é mais baseado nos grandes slogans milenaristas samorianos. A sua tónica é, sem dúvida, a quantidade, mas é uma quantidade não mais revolucionária, é uma quantidade digamos que neutra, trabalhada no modelo das estatísticas internacionais.
No cadinho dos novos tempos - abertos, plurais, optimistas, jovens - surgem como cogumelos os partidos políticos, as igrejas, as organizações não-governamentais, as universidades e os jornais independentes, inicia-se e consolida-se a prática de ascensão ao poder por via eleitoral com toda a panóplia do teatro político e das acusações de complô e de feitiçaria fraudal, os Moçambicanos aprendem, afinal, apesar de todas as dificuldades, que pensar de forma diferente é possível. E pensam. O fusível samoriano é arrumado no passado.
Um discurso agora sem recurso ao inimigo sistemático da era samoriana toma conta do vocabulário oficial, apelando para um universalismo de oportunidades enquanto esconde a particularidade dos interesses dos emissores.
Que particularidade? As elites no poder constituem-se em burguesia fundiária, mercantil e compradora, montando um conjunto de mecanismos de acumulação e de enriquecimento rápidos, inviáveis no samorismo, de que o ex-banco Austral é um paradigma. Em meio à consolidação das faustosas dinastias capitalistas nacionais, vinga o modelo da democracia à europeia, com a sua corte de fait divers, de escândalos, de greves de trabalhadores despedidos das antigas empresas estatais, de criminalidade e de gangs em acção. O socialismo e o xinconhoca pertencem defintivamente ao passado, Samora mantém-se apenas um pouco, como redentor, na memória popular fustigada pela criminalidade galopante e nas comemorações dos heróis nacionais.
Ao mesmo tempo, procede-se a uma negociação de paz com o passado e os chefes tradicionais são recuperados enquanto cobradores de impostos e gestores das tradições, de par com toda uma apologia das virtudes das tradições e do deixa-andar rural.
Momento fundamental é a redução drástica do arbitrário samoriano, o reenvio das práticas do Estado para as leis escritas, para o direito à defesa, para o emaranhado legal e legalista, para o recurso crescente aos advogados. Ao social concede-se que ele tem uma espécie de lei natural que deve ter curso, que não deve ser entravada. A nova filosofia (que é, afinal, a velha filosofia do Capital) consiste em deixar as coisas correrem por si-próprias. Ministros nomeados ficam onde estão sem limite de tempo nem avaliação de erros. Deixa andar, deixa fazer. Se surgem cristas, conflitos, derrapagens, devem ser revolvidos nas instâncias próprias, sem alarido. A pena de morte desaparece, os campos de reeducação tornam-se memória.
Todavia, a natureza formal, diurna, do Estado, apoiada em veementes discursos de reforma optimista, é apenas uma das faces de Jano, pois a outra face é constituída pela natureza informal, nocturna, das redes familiares, clientelistas e patrimoniais. O Estado é não só, frequentemente, um prolongamento das famílias, mas, também, uma agência informal de impostos de sobrevivência. Dia e noite dão-se mãos de forma harmoniosa na mãos de actores de uma mestiçagem política impecável.
Todo esse mundo denso, diverso, dialéctico, com velocidades diferentes, viaja num combóio com carruagens cheias de novas práticas e termos: boa governação, género, HIV/SIDA, combate à pobreza.
Entretanto, manter o controle do Estado é, sempre, o êmbolo do partido vencedor da luta de libertação nacional. Ora, o surgimento de novos partidos políticos, especialmente a transformação da Renamo em partido político, leva a Frelimo a um duplo movimento: se por um lado rege e deixa reger o social digamos que democraticamente (ainda que qualquer erupção de pensar diferente mais perigoso seja motivo de uma repressão severa por parte de uma polícia de intervenção rápida acantonada nas cidades), por outro evacua publicamente dois princípios samorianos basilares: a crítica e a auto-crítica.
A Frelimo outorga-se dois direitos, cujo caução vai buscar à vitória contra o colonialismo: o de ter sempre razão e o de ser o único partido capaz de dirigir o país.
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(continua, sempre de forma artesanal, remendável. Em qualquer altura posso corrigir, reformular)

1 comentário:

Carlos Serra disse...

Excelente observação, Fátima!