05 janeiro 2007

Pequena sociologia do caso SOICO

No dia 28 de Dezembro, sexta-feira, funcionários judiciais entraram na sede do Grupo SOICO com auto de penhora dos bens do jornal "O País", passado pelo juíz da 9.ª secção (laboral) do Tribunal Judicial da cidade de Maputo, Pedro Chambal, na sequência de um processo intentado pela senhora Flávia Celeste Neto Alexandre dos Santos. Nesse dia e também a 29, duas viaturas e vários computadores foram levados.
Imediatamente, o grupo desencadeou através da estação televisiva STV, sua pertença, uma campanha de denúncia do acto, explorando inteligentemente dois fenómenos: (1) o facto de a queixosa ser irmã de Virgínia Matabele, ministra da Mulher e Acção Social (2) o facto de a penhora ter sido efectuada em pleno período de festas.
"Querem silenciar-nos", foi o mote de defesa e ataque.
Portadora de um grau de audiência invejável na cidade de Maputo, servida por uma equipa jovem e agressiva de jornalistas, a STV, apoiada pelo jornal "O País", em versão escrita e online na net, transformou o seu caso em notícia permanente, explorando bem um fenómeno que sempre surte efeito: a vitimização. A propósito dos outros, falou de si, ampliou ainda mais a atenção e a rede dos telespectadores (e não só).
Ao mesmo tempo, esse jornalismo de ponta foi apoiado pela intervenção solidária de organizações e pessoas singulares de vários quadrantes, designadamente os presidentes da Liga dos Direitos Humanos, do MISA e da Associação Comercial da cidade de Maputo, respectivamente Alice Mabota, Tomás Vieira Mário e Adriano Buque; o jornalista e presidente do Conselho de Administração da Mediacoop, Fernando Lima; vendedores da Malanga; representantes dos partidos PDD, Renamo e Ecologista, respectivamente Raúl Domingos, Fernando Mazanga e João Massango; o presidente da Renamo, Afonso Dhlakama; a Confederação das Associações Económicas de Moçambique (CTA); e religiosos, com o porta-voz em Dinis Matola, secretário-geral do Conselho Cristão de Moçambique.
O caso estava generalizado e politizado (cerceamento da liberdade de imprensa tornou-se a ideia matriz). A sede do grupo SOICO passou a ser uma espécie de lugar de peregrinação. E passou a ser propriedade simbólica do público, que igualmente se tornou parceiro, jogador, interveniente, opinador.
Entretanto, entrou em cena o juiz Augusto Paulino, figura mediática, na qualidade de juiz-presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. Em entrevista à Rádio Moçambique, o juiz condenou a STV e falou em "espectáculo gratuito". Se a STV tivesse agido em tempo útil nos trâmites judiciais, não teria existido o espectáculo.
Ontem, a presidente da Associação Moçambicana de Juízes, Vitalina Papadakis, acompanhada de outros dois juizes, Osvalda Joana e Pascoal Jussa, fez uma veemente crítica ao grupo SOICO, afirmando em conferência de imprensa que o grupo SOICO manipulou de forma inaceitável a opinião pública no sentido de colocar-se acima da lei ao denegrir o juiz da causa, Pedro Chambale.
Em nome da associação, Vitalina solidarizou-se com os seus colegas Pedro Chambale e Augusto Paulino.
Um caso inédito na história da magistratura nacional: o espírito de corpo publicamente mostrado, um espírito de combate. A vinda a terreiro da AJM mostra imediatamente duas coisas: (1) a força do impacto público do discurso do SOICO: (2) a busca de audiência e de solidariedade públicas por parte dos juízes, entrando clara e decididamente nos carris fabricados pelo SOICO (de outra forma, os juízes teriam permanecido no rigor processual - e digamos silencioso - dos corredores judiciais).
Enquanto isso, o grupo SOICO multiplica e amplia sem descanso a sua defesa na STV e no "O País". Um jornalismo de combate, um saber-fazer notícia a todo o momento, um saber trazer para o debate e para a solidariedade o público consumidor.
Temos, assim, uma luta entre dois grupos e duas linhas: de um lado um grupo empresarial de jornalismo variado, transformando habil e politicamente em notícia uma ordem judicial e explorando bem a vitimização, apoiado por advogado inteligente; do outro, um corpo de juízes, defendendo a lei, o direito positivo, neutral, silencioso, a concentração do caso nos corredores dos tribunais e criticando com severidade o seu aproveitamento público.
Por palavras mais simples, uma luta entre Capital e Estado, entre os meandros públicos da comunicação de massa e os meandros que se pretendem silenciosos da justiça.
Mais profundamente ainda: uma luta entre fazer o cidadão partilhar coisas e evitar que o cidadão partilhe coisas.
Uma luta entre dois discursos, duas interpretações, duas formas de solidariedade, entre duas formas de ver a vida, entre dois processos de qualificação do que bom e do que é mau, do que deve ser dito e do que não deve ser dito.
Mas um luta que, ao fim e ao cabo, mostra, também, que a democracia é possível no país. Quando ela assim acontece, espontaneamente, mesmo se buliçosa (e ainda bem que buliçosa), sem necessidade de a enunciarmos, estamos, por hipótese, no bom caminho. Com efeito, quando exigimos democracia é porque ela não existe. Como afirmou o linguista americano Noam Chomsky, "quanto maior é a necessidade de falar em democracia, menos democrático é o sistema".
Mas, afinal e a terminar, o que está verdadeiramente em causa?
Talvez Rogério Sitoe, director do diário "Notícias", tenha encontrado a chave em crónica hoje publicada.
Depois de se referir aos "elos fracos da injustiça da Justiça" e aos "Cidadãos anónimos, longe do apoio de elites e da mediatização televisiva", Sitoe escreveu:
"Até provas em contrário, é sobre o mau funcionamento dos tribunais que deve ser exercida toda a pressão, para que a Justiça funcione correctamente. É contra a atitude pouco profissional, estranha e por vezes suspeita e abusiva de alguns juízes que a sociedade civil, as elites devem agir como forças activas para que a Justiça funcione correctamente e com transparência neste país, e dissocie-se dos fantasmas políticos."
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Deixei prepositadamente de lado um enorme conjunto de fenómenos que preenchem o caso SOICO.

4 comentários:

Anónimo disse...

Sim Prof, notei a partir deste caso que a democracia em Moçambique é possível ou ela existente em forma latente. O que é necessário é fazer passar a mensagem essencial. Não será isto que se apelida de cidadania participativa?

António

Carlos Serra disse...

A expressão cidadania participativa parece-me óptima. Mas há dois problemas: por um lado,o conceito de democracia, por mim usado no apontamento de forma vaga; por outro, o problema de saber-se se o exercício democrático que parece atravessar o caso SOICO (expressão livre de ideias, neste caso)teria a mesma imponência fora de Maputo.

Anónimo disse...

Se olharmos do ponto de vista de manipulacao dos discursos de forma a criar aliados e apoiantes de uma causa; tivermos confronto e debate entre a defesa de um ideal e/ou sistema e outro, creio que o mais provavel seja que (talvez a um nivel menos mediatico, num espaco geografico de menor dimencao e envolvendo menos espectadores) esta democracia bulicosa seja possivel mesmo fora do Maputo. A questao e saber usar os meios que se tem para se apelar a batalha de palavras, em lugar de punhos.

Tentei lembrar-me de algum exemplo recente no resto do pais, e infelizmente nao consegui, mas tenho em crer que eles andam ai.

Carlos Serra disse...

Vamos acreditar que sim, la strega.